Até que ponto o ser humano é realmente livre?
Por Guilherme Germer*
A liberdade da Vontade, de Schopenhauer, foi escrito em 1839 para um concurso de filosofia do qual Schopenhauer saiu vencedor. Ele inaugura o período tardio da produção desse autor, que também lhe abriu as portas para seu atrasado reconhecimento público.
Trata-se de uma obra inserida no campo da ética, que “a ninguém pode ser alheio ou indiferente”, pois seu objeto somos nós mesmos. Outra boa razão para lê-lo é a de que ele parte do “comum a todos”, isto é, não se baseia em pressupostos filosóficos, pois o concurso exigia uma redação autossuficiente. Assim, temos ao nosso alcance uma excelente porta de entrada à filosofia desse autor tão importante.
Se engana quem acredita que o livro só pode ser desfrutado por especialistas. Afinal, seu eixo gravitacional – a saber, a necessidade do agir humano a partir de causas suficientes – também foi tematizado até mesmo por clássicos do cinema e da cultura pop: o que torna De volta para o futuro, O homem do futuro e Durante a tormenta filmes inteligentes, para se ater a poucos exemplos? Entre outras coisas, seu conteúdo filosófico, que eles diluem em outros ingredientes.
Quando o cientista “Brown”, do filme de Spielberg, proíbe Marty de sair de casa ou fazer qualquer coisa após descobrir que ele veio do futuro, demonstra ter uma sabedoria epistemológica interessante, e com uma boa sintonia com Schopenhauer: qualquer modificação no passado provocaria um novo percurso no “space-time continuum” (cadeia espaço-temporal) – o que, na melhor das hipóteses, produziria outro futuro, no qual Marty talvez nem existisse. Porém, “Doc” pressentia que algo muito pior poderia acontecer, com o que mostrava também estar respaldado pela filosofia.
Em O homem do futuro, o físico “João” também se dá conta de que sua máquina do tempo é, antes, uma “máquina do fim dos tempos”.
Seus diversos retornos ao passado (que renderam a inesquecível cena de três versões suas brigando entre si) criaram um “paradoxo quântico”, que só poderia ser removido com a aceitação de todos de que “não se muda o que já foi (…) O que é a realidade? Uma trama formada por espaço e tempo” – com essa citação de Einstein o filme inicia, a qual também poderia ser de Schopenhauer. E no seu fim, ele nos faz pensar: e se alguém retirado do meio dessa trama tentasse reescrever o seu início, de onde ele tiraria elementos para tanto – de qual história e caráter – se justamente o que o constituía até então lhe foi subtraído?
Durante a tormenta também é um filme muito diferenciado em termos de conteúdo filosófico. Porém, todos eles devem pedir licença poética à filosofia para encenarem um contrassenso fatal: por menor que seja a interferência do presente no passado, ela é impensável, pois como poderia ocorrer se a resolução do passado é, justamente, uma condição prévia de toda ação do presente?
Se presente e passado dependerem, reciprocamente, da resolução um do outro para agirem, nenhum dos dois sairão do lugar, pois lhes faltará uma causa suficiente para tanto. Fantasias à parte, a impossibilidade de se mudar o passado parece ser a lição filosófica sussurrada pelos três filmes. E quanto ao presente e o futuro, estarão mais “abertos” do que o passado, pensando objetivamente?
A liberdade da Vontade também se dirige a essa questão. A realidade, para Schopenhauer, é uma cadeia de fenômenos conectados pela lei de causalidade, e dispostos nas formas a priori do tempo e espaço. Para que um fenômeno ocorra, são necessárias uma causa e uma causalidade.
A primeira consiste em uma configuração da matéria no espaço e tempo, e a segunda, em uma força natural e invisível que empresta à causa seu poder transformador. Nessa base Schopenhauer responde à questão concursal de se somos ou não livres em sentido radical.
Apenas para instigar à leitura dessa obra-prima, citemos seu seguinte experimento: você segura algumas varetas coloridas sobre a mesa, pensa que “elas podem cair para qualquer direção” e as solta. O que significa o “pode” dessa frase? Pelas leis da física e a disposição das varetas, a posição final das mesmas está completamente determinada! O “pode” significa apenas que não somos capazes de prever o resultado final.
E com o agir humano, ocorre algo distinto? Só porque vemos nossas transformações “de dentro” e não “de fora”, e as provocamos a partir de uma causalidade mais complexa (nossa vontade), que também é influenciável pelo abstrato e o distante, isso quer dizer que não há regularidade, caráter próprio e necessidade na produção de nossos efeitos a partir de causas suficientes? Fantasia à parte, seria realmente possível que o mesmo homem, dotado da mesma vontade (seu caráter), e numa mesma situação, agisse ora de uma maneira, ora de outra?
Essa é a interrogação principal que Schopenhauer busca responder nesse livro, e cuja resposta antecipa elementos decisivos dos antídotos propostos por Nietzsche contra a “maior e mais sinistra doença” da humanidade, e por Freud contra o “problema mais importante da evolução cultural”: a culpa.
*Guilherme Marconi Germer é doutor em Filosofia pela Unicamp e pós-doutorando em Filosofia pela USP e responsável pela introdução do livro A liberdade da vontade.