Governo goiano substitui professores por televisores em território Kalunga (GO)
Ao longo dos últimos cinco anos, comunidades quilombolas do território Kalunga, em Goiás, viram professores sendo substituídos por telas nas salas de aula do Ensino Médio.
A mudança, imposta pela Secretaria de Educação do estado (Seduc-GO) por meio do programa GoiásTec, foi rejeitada pela população local desde o início da implementação.
Apesar da resistência, o modelo de aulas transmitidas por televisores vem se expandindo no território e em outras áreas rurais do estado, que sequer têm acesso adequado à conexão de internet.
Moradores do território relataram que o programa traz prejuízos para a aprendizagem dos alunos e precariza o trabalho de professores quilombolas, além de não respeitar a identidade cultural Kalunga. “É um fracasso”, definiu Romes Santos, professor e pai de aluno que tem aulas nesse formato.
O programa prevê que os estudantes, em salas de aula do território quilombola, assistam a transmissão ao vivo de aulas ministradas por professores em estúdio. Os alunos são acompanhados por um monitor, que deve garantir a interação entre os participantes, por meio de chat. No entanto, a realidade é outra: devido à precariedade de acesso à internet, quedas de energia e falta de equipamentos adequados, a participação em tempo real é praticamente impossível na maior parte das comunidades.
Segundo um professor e liderança quilombola local, que preferiu não se identificar por medo de represálias, em algumas escolas, nunca houve interação ao vivo. “Os professores estão sempre repassando as vídeos aulas gravadas com muito atraso, chegando a atrasar semanas, até mesmo um mês de aulas, e na aplicação das avaliações, os estudantes ainda não viram os conteúdos dos vídeos”, afirmou.
O Colégio Estadual Quilombola Kalunga Mãe França, por exemplo, um dos poucos colégios de mais fácil acesso e que fica a cerca de 25 km do município de Teresina de Goiás (GO), não dispõe de internet para que os alunos assistam às aulas desde a implantação do programa em janeiro de 2023. Nem mesmo os mediadores da unidade conseguem baixar as aulas gravadas em estúdios da capital goiana.
A população alerta que a proposta do governo em relação ao GoiásTec esconde o real problema: a falta de investimento nas escolas rurais. Impor o modelo de educação à distância sem a infraestrutura necessária apenas agrava as disparidades educacionais e sociais.
O programa já foi implementado em comunidades Kalunga localizadas nos municípios goianos de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás. Os moradores relatam que a mudança foi imposta sem consulta à população local, como determinam as normas.
“Esse GoiásTec caiu em nossa comunidade de paraquedas, nós pais não ficamos sabendo e eu não estou satisfeita”, apontou Maria Pereira, quilombola da comunidade Vão de Almas, em Cavalcante (GO).
Os estudantes também rejeitam a mudança e cobram a volta das aulas presenciais. “Quando eu comecei a estudar, era normal, com o professor na sala de aula. Aí entrou o GoiásTec. A gente não aprende. É injusto tirar o professor da sala para colocar o aluno para assistir às aulas gravadas”, contestou Silvana, aluna de 40 anos do Educação para Jovens e Adultos (EJA).
Tramitação silenciosa
O programa GoiásTec – Ensino Médio ao Alcance de Todos foi criado em julho de 2020, por meio da lei estadual nº 20.802. Segundo a norma, o objetivo é implantar o “Ensino Médio por Mediação Tecnológica” em áreas rurais e regiões de difícil acesso ou que possuam carência de professores habilitados por área de conhecimento.
O projeto começou a tramitar na Assembleia Legislativa de Goiás (ALGO) em 2019 e foi aprovado em duas sessões de votação, em junho de 2020. Além de muito ágil, a tramitação é definida pela comunidade Kalunga como “silenciosa”, já que a população não foi devidamente consultada, contrariando normas.
A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata dos direitos dos povos indígenas e comunidades tribais, e o Regimento Interno da Associação Quilombola Kalunga (AQK) estabelecem a obrigatoriedade de realização de consulta livre, prévia e informada à população em casos de obras, ações, políticas ou programas que possam afetar ou violar os direitos e interesses dos povos tradicionais.
A carência de professores habilitados no território, apontada como um dos requisitos na legislação que instituiu o GoiásTec, também é questionada pela comunidade. O território Kalunga conta com diversos quilombolas graduados ou em processo de formação em Licenciatura em Educação no Campo, ofertada em instituições da região, como a Universidade de Brasília (UnB) e a Universidade Federal de Goiás (UFG).
“É um reforço da discriminação e da desigualdade, colocando em cheque e na balança a capacidade formativa e a competência dos professores locais em desenvolver as aulas no seu território”, defendeu a liderança ouvida pela reportagem.
Impactos
As aulas transmitidas por telas limitam a autonomia, a participação ativa e as interações sociais dos estudantes, prejudicando a aprendizagem. Além disso, o ensino nessa modalidade não atende às especificidades das comunidades Kalunga, tampouco respeita a identidade cultural quilombola.
A aluna Francileia dos Santos está apreensiva, pois a partir de fevereiro também estudará em uma escola do território que implementou o GoiásTec. “Eu vejo alguns alunos falando que eles não estão se desenvolvendo nas matérias, nos assuntos que eles colocam ali para eles assistirem. Isso acaba até me desanimando e creio que desanima também os outros alunos”, relatou.
Outra preocupação é o esvaziamento das comunidades quilombolas, tanto por parte dos alunos, quanto dos professores locais recém-formados que estão sem expectativa de emprego dentro do território.
“Os alunos estão saindo de dentro da sua comunidade para poder estudar na cidade, porque não estão tendo professores presentes dentro da sala de aula, coisa que não deveria estar acontecendo, mas está acontecendo infelizmente por causa do GoiásTec”, apontou Bárbara Santos, da comunidade Ema, localizada no município de Teresina de Goiás.
Os estudantes quilombolas também relatam cansaço mental, dores de cabeça e problemas de visão que se tornaram mais frequentes com a imposição do uso abusivo das telas de TVs para assistir às aulas e realizar outras atividades educativas.
“Estamos perdendo os nossos direitos já conquistados: o direito de ser quilombola, de estar e atuar no nosso território”, defendeu um dos líderes locais. “Estamos vivendo a desvalorização da interação professor e aluno e a intensificação de uma educação colonizadora, racista. Além disso, há prejuízo em relação às organizações locais e à auto-organização do território”.
A Educação Escolar Quilombola, que tem diretrizes previstas em resolução do Conselho Nacional de Educação, deve ser ofertada em escolas localizadas nas comunidades tradicionais e naquelas próximas, que recebem estudantes dos territórios quilombolas. Além disso, deve garantir aos estudantes o direito de ter acesso aos conhecimentos tradicionais, como línguas, práticas culturais, tecnologias e formas de produção, festejos, tradições e demais elementos que compõem o patrimônio cultural quilombola.
No entanto, a população afirma que a cultura Kalunga não tem sido respeitada nem promovida nas teleaulas do GoiásTec.
“No fundo, o que se intenciona é a desapropriação dos saberes para inserção de um modelo de conhecimento e desenvolvimento massivo tecnológico, tecnificado, onde a vida vale menos do que os produtos encontrados nas prateleiras dos supermercados. O GoiásTec é um projeto genocídio, de desapropriação e expulsão dos sujeitos do campo visto que ignora a ciência e as tecnologias tradicionais desenraizando cada vez mais os sujeitos da sua identidade”, diz carta coletiva assinada pela comunidade.
O que diz o governo?
Procurada para esclarecimentos, a Secretaria de Educação de GO (Seduc-GO) defendeu o programa. “O projeto GoiásTec foi aprovado por todos as áreas de certificação para que fosse implantado em Goiás com o objetivo de melhorar o processo de ensino-aprendizagem no estado”, afirmou em nota.
Segundo a pasta, a implantação do modelo só ocorre após “análise da demanda da região, reunião e aceite da comunidade escolar”, o que é contestado pelas comunidades Kalunga, que afirmam não terem sido ouvidas.
A secretaria disse ainda que o programa levou “ao fim situações que não permitiam que o processo educacional ocorresse da maneira correta, considerando-se a formação do professor e sua atuação”. Segundo o órgão, existiam casos de pessoas com Ensino Médio completo, sem formação superior, ministrando aulas.
A Seduc-GO também informou que atualmente o programa tem mais de 9 mil estudantes matriculados e que não há “registros de queixas sobre a implantação e o ritmo das aulas”. “Ao contrário, conforme ocorrido no Enem 2024, vários estudantes tiveram excelentes resultados em Língua Portuguesa e em Redação”, conclui a pasta.
Ministério Público acompanha o caso
Está em tramitação, por iniciativa do Ministério Público de Goiás (MPGO), um procedimento administrativo em relação aos problemas apontados na execução do programa GoiásTec.
Em resposta à reportagem, a assessoria do MPGO afirmou que “estão sendo realizadas articulações e diálogos com o governo estadual para tratar do assunto”. “Até o momento, foram realizadas reuniões com a comunidade local, bem como encontros em Goiânia, com a participação do Compor [Centro de Autocomposição de Conflitos e Segurança Jurídica], que tem atuado como interlocutor no processo”.
Ao contrário do que afirma a nota enviada pela Seduc-GO, em visita realizada pela promotora Úrsula Catarina Fernandes à Escola Municipal Tia Adesuíta, localizada na comunidade quilombola Diadema, no município de Teresina de Goiás (GO), os moradores manifestaram “unanimemente o voto pelo estabelecimento do ensino presencial do primeiro ano do fundamental até o terceiro do ensino médio, negando a possibilidade de implantação do GoiásTec”, conforme trecho do procedimento administrativo do MPGO.
Fonte e texto: Brasil de Fato DF