Alanir Cardoso, um arraiano: Memórias da saga comunista (Parte II)

Por Luiz Manfredini, do Portal Vermelho
O capítulo desta quarta-feira da série “Memórias da saga comunista” contempla o histórico dirigente Alanir Cardoso.
Goiano de Arraias (hoje Estado do Tocantins), vive no Recife desde 1980, após cumprir mais de cinco anos de prisão.
Nesse ano foi eleito para o Comitê Central do PCdoB, cujo Comitê Estadual de Pernambuco dirige a partir de 2000.
Sem mulher, sem filhos, sem nada
– Meu nome é Luís Soares Lima. Sou baiano de Barreiras.
E os torturadores, aos berros:
– Você é Alanir Cardoso, dirigente do PCdoB no Nordeste!
Encapuzado e preso ao pau-de-arara, o corpo se contorcendo a cada descarga de eletricidade.
-Onde você mora? Com quem vai se encontrar?
– Sou Luís Soares Lima, não vou me encontrar com ninguém e não moro.
Gritos, xingamentos e correrias na sala de tortura.
Dois dias se passaram. Pau-de-arara, choques elétricos, afogamentos e pancadas. Até que trouxeram Fred Morris, o pastor metodista norte-americano, simpatizante do partido.
Acareados sob tortura, queriam de Fred o nome real e o endereço de quem se apresentava como Luís Soares Lima. E ele, de fato, não sabia. O outro queria aliviar a situação do pastor.
– Você me conhece como Luís, Fred. Mas sou Alanir Cardoso, estudante perseguido.
Um enxame de torturadores caiu sobre Alanir.
– Onde você mora? Onde você mora? – berravam todos ao mesmo tempo.
– Não moro. Não tenho mulher, não tenho filho, não tenho nada!
O torturador ergueu o capuz, olhou nos olhos de Alanir e disse, voz de decisão e ódio:
– Sou torturador e vou matar você!
Recebeu do prisioneiro o olhar severo e áspero do sertanejo de há muito curtido pelo sofrimento.
Dias depois, a notícia: solto, Fred Morris fora expulso do Brasil. Nos Estados Unidos, difundia a violência da ditadura brasileira. Alanir pensou: “Agora a situação mudou, minha prisão vai para o mundo”.
Quando o policial trouxe-lhe a roupa e mandou que se vestisse, ele retrucou:
– Vestir para que? Eu vou para onde?
Não vestiu. Vestiram-no à força.
O policial veio com a prancheta na mão.
– É para você assinar.
– Assinar o quê?
– A relação das suas coisas.
– Que coisas? Eu vou para onde?
Na prancheta, o nome de Luís Soares Lima.
– Primeiro não sou essa pessoa, sou Alanir Cardoso. Depois, não vou assinar nada!
E o policial, perplexo.
– Quem são vocês? Eu estou onde? Eu vou para onde?
Em Brasília, ao recebê-lo, o cabo lhe indaga sobre o nome falso.
– Não tenho nome falso.
– O nome de guerra.
– Que guerra? Guerra é o que vocês estão fazendo comigo, sendo torturado esse tempo todo. E o seu nome, qual é?
E o cabo, perplexo.
Dias depois:
– Veste a roupa.
– Para que? Eu vou para onde? Quem são vocês? Não vou vestir.
Vestiram-no à força.
Ainda em Brasília, mandam-no tomar banho e vestir a roupa que lhe entregam.
– Banho para que? Para ser torturado mais uma vez? Não vou tomar.
Não tomou.
Quando, no dia seguinte, lhe trouxeram a bandeja com feijoada, disse: – Não vou comer.
Preparava-se a visita do comandante do quartel. Um coronel e sua comitiva.
E Alanir, agarrado às grades:
– Eu quero saber por que estou a 55 dias sendo torturado. Onde é que estou? Quem são vocês?
E o coronel, perplexo.
– Mas aqui você não foi torturado – gaguejou.
No campo de treinamento militar nos arredores de Brasília, deitado em cruz ao lado de um buraco. E um torturador, erguendo-lhe o capuz:
– Olhe a cova onde você vai ser enterrado.
Em seguida, no quarto com cavaletes de ferro, correntes dependuradas no teto e a pequena máquina do choque elétrico, cinco jovens de não mais que 30 anos, de manga de camisa e calças jeans sentados em tamboretes diante de Alanir.
– Nós somos do Movimento Anti Comunista, o MAC, somos quadros tanto quanto você, só que do lado de cá. Não temos nada contra você, pessoalmente. Nossa tarefa aqui é arrancar as informações que você tem.
– Os jornais de hoje, no Recife – disse um deles – dizem que você se evadiu. Você sabe o que significa isso?
Alanir os mirava, um a um, olhos calejados de sertanejo.
– Sou Alanir Cardoso. Não moro. Não tenho mulher, não tenho filho, não tenho nada!
Pau-de-arara, choque, afogamento, chutes, murros.
– Vamos trazer seu pai para cá!
Setenta e quatro dias de suplício.