Alanir Cardoso, um arraiano: Memórias da saga comunista (Parte I)



Por Luiz Manfredini,  do Portal Vermelho


O capítulo desta quarta-feira da série “Memórias da saga comunista” contempla o histórico dirigente Alanir Cardoso. 


Goiano de Arraias (hoje Estado do Tocantins), vive no Recife desde 1980, após cumprir mais de cinco anos de prisão. 


Nesse ano foi eleito para o Comitê Central do PCdoB, cujo Comitê Estadual de Pernambuco dirige a partir de 2000.

Arraias é a cidade mais antiga do antigo Estado de Goiás, na região que viria a ser o sul do atual Tocantins. No século 16, fartou-se da imensidão de ouro arrancada do solo por mãos escravas. 


Nos anos 20 do século passado, por inescrutáveis razões, recebeu com festa – e direito à banda de música – a coluna comandada por Luiz Carlos Prestes. E a cidade passou a cultivar a honra de ter sido o local onde a coluna permaneceu por mais tempo: 13 dias seguidos. 


Fotografias, depoimentos, notas em jornais, edifícios preservados somam-se na comprovação do feito que, a partir dali, vincaria na história do povoado o nome emblemático do Cavaleiro da Esperança e suas andanças e suas lutas.


O comerciante e proprietário rural Agripino Cardoso, descendente do Brigadeiro Felipe Antônio Cardoso, comandante da bandeira que descobriu o farto ouro de Arrais, estava na banda que tocou, frenética, para receber os homens da coluna. Seu filho Alanir criou-se sorvendo essa tradição. 


Um dos nove rebentos do segundo casamento de Agripino, o menino nasceu em 1943, na vizinha Campos Belos, onde cursou o primário e, aos sete anos, mudou-se com a família para Arraias. No início de 1964 estava na capital para prosseguir os estudos, primeiro no Liceu de Goiânia, depois no Colégio Rui Barbosa. Ali as vagas impressões de movimentos e lutas do imaginário infantil ganharam forma, contornos que as empurraram da fantasia à realidade.


Os três primeiros meses de Alanir em Goiânia, que coincidiram com os três meses finais do governo João Goulart, de extrema turbulência política, representaram para o jovem de Arraias verdadeira universidade em política. Embora secundarista, circulava entre universitários e seus movimentos e frequentava as manifestações que se sucediam, principalmente os grandes e agitados comícios pela reforma agrária onde ouvia, siderado, a palavra inflamada de Leonel Brizola, Darcy Ribeiro e Francisco Julião, o líder das Ligas Camponesas.


Alanir não era um militante organizado quando se destacou, mesmo sob os rigores do golpe militar desfechado em 31 de março contra o presidente João Goulart, no movimento secundarista goiano, primeiro liderando a organização do grêmio do Colégio Rui Barbosa, depois da entidade estadual e, por fim, quando foi eleito vice-presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), num congresso realizado em Belo Horizonte. 


Eleito como independente, um mês depois ingressava na AP, hegemônica no movimento estudantil.


Em setembro de 1968, a liderança de uma manifestação durante o desfile de Sete de setembro, em Goiânia, lhe valeu um mês de prisão, sua primeira experiência com a perversa mão repressiva da ditadura. 


Após deixar a UBES, no início de 1970, Alanir passou a dedicar-se a algo que não mais o abandonaria: a organização revolucionária, primeiro na AP, depois no PCdoB. 


Passou por Minas Gerais, onde se ligou ao movimento operário, por São Paulo e, finalmente, instalou-se em Recife em março de 1972. Ao chegar à cidade, já se apresentou ao PCdoB, ao qual a AP estava se incorporando. 


Em Brasília, logo após deixar Minas, encontrou-se clandestinamente com o pai, que não via há pelo menos três anos. 


Conversaram por quase quatro horas, só os dois, frente a frente. Agripino chegou a lhe oferecer um refúgio no interior de Mato Grosso, onde possuía amigos, ou recursos para sair do País. Alanir recusou, seguiria lutando dentro do Brasil. 


O pai compreendeu a opção do filho e lhe deu algum dinheiro. Perguntou para onde ele iria, mas Alanir não podia revelar. “Mais dia, menos dia o senhor vai receber notícias minhas”, disse. Recebeu-as por meio de cartas que percorriam os complexos e lentos labirintos da clandestinidade. Mas pai e filho nunca mais se encontrariam. 


Em fevereiro de 1974 Alanir chegou a Juazeiro, Ceará, já casado com Maria das Neves Santos, a Nevinha. 


Paraibana de Princesa Izabel, onde nasceu em 1935, e formada em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco, ela já militava no PCdoB quando conheceu Alanir, logo que este chegou ao Recife, transitando da AP ao partido, em 1972 Casaram-se em junho de 1973 e, poucos meses depois, Nevinha demitiu-se da Sudene e seguiu para Juazeiro. 


Alanir dividia a direção regional com quatro outros: Luciano Siqueira, o dirigente principal, João Bosco Rolemberg Cortes, de Sergipe, Raimundo Oswaldo e Rui Frazão, ambos do Ceará, jovens que haviam deixado a universidade para internar-se na luta contra a ditadura. 


Três meses depois, no entanto, Alanir deixou Juazeiro. Nevinha fora identificada por um militante, o que feria as rigorosas regras de segurança da época. Além do mais, já circulavam notícias sobre prisões. Resolveram se transferir para Petrolina. Mas ali a estada foi ainda mais curta. 


Nem haviam trazido a mudança de Juazeiro quando, casualmente, souberam de uma prisão na feira da cidade. Mais tarde viriam a saber que a prisão fora de Rui Frazão, desaparecido desde então. Resolveram se fixar em Feira de Santana. 


O vaivém era ditado, sobretudo, pelas dramáticas circunstâncias da clandestinidade. 


O dirigente percebia a situação e tomava decisões, levando sempre em conta, ao lado das injunções políticas, sua segurança pessoal e a do partido. 


Antes de aportar em Feira de Santana, Alanir e Maria das Neves passaram em Campina Grande, onde souberam da extensão das prisões, inclusive a de Luciano Siqueira. Ao todo, cerca de 30, entre fevereiro e maio de 1974. 


A partir de Feira de Santana Alanir dedicou-se a reorganizar os que não haviam sido presos. Viajava por toda a região, de Alagoas ao Ceará, vendendo confecções e organizando o partido.


Mas ele próprio seria alcançado, no último dia de setembro do mesmo ano de 1974. Foi preso pela manhã, quando deixava a casa do pastor da igreja metodista norte-americana Fred Morris, simpatizante do partido.


De volta ao Recife, após a macabra temporada em Brasília, e lançado numa cela do Doi-Codi, Alanir concluiu que, àquela altura, não seria mais assassinado. A situação, no entanto, arrastava-se sem solução aparente. 


Tentando conduzi-la a um desfecho, iniciou greve de fome. Não a declarou, apenas deixou de comer. Uma semana depois – 13 de dezembro de 1974 – o resultado: foi transferido para o presídio Barreto Campelo, na ilha de Itamaracá. Na primeira cela da galeria dos presos políticos viu Luciano Siqueira. Mas não acusou o reconhecimento. 


Nas outras celas, muita gente, entre conhecidos e desconhecidos. Não se dirigiu a ninguém. O silêncio era geral.
– Está vindo de onde? – alguém perguntou, os demais aguçando os ouvidos.


– Sou Alanir Cardoso, estou vindo das torturas – anunciou com a voz cavernosa de quem passara mais de dois meses praticamente sem falar.


A greve de fome, encerrou-a naquele momento. Perdera o sentido.


Só mais tarde, ao receber a visita de irmãos, soube da morte do pai, no ano anterior. Recordou o último encontro, aquela longa conversa de horas frente a frente, só os dois, em Brasília, alguns anos antes. 


O pai lhe oferecendo ajuda, compreensivo com a luta do filho. Esquadrinhou a memória. “Mais dia, menos dia o senhor vai receber notícias minhas”. Sem confessá-lo, ambos suspeitavam ser aquela despedida a derradeira. 


Julgado e condenado como incurso na Lei de Segurança Nacional, Alanir só deixaria a prisão mais de quatro anos depois, em abril de 1979. Foi morar em Maceió, onde Nevinha, que conseguira driblar a perseguição policial, vivia e trabalhava. 


Um ano depois, em maio de 1980, o casal transferiu-se em definitivo para Recife. 


Desde então Alanir participa da direção do partido em Pernambuco, sendo seu dirigente principal de 2000 em diante. Em 1980 passou a integrar o Comitê Central.

Deixe um comentário