Deu em “O Popular”: Ele mora debaixo da terra há 25 anos



Cigarro de fumo de rolo na boca. Pedaço de roupa no corpo sujo. Sandália improvisada nos pés. Barba por fazer. 


De dentro do buraco de 10 metros de comprimento surge Antônio Francisco Calado, de 57 anos, a imagem do homem primitivo.


Ele próprio cavou o seu aconchego em uma pequena área da fazenda da família nas encostas de serras no município de Nova Roma, a 580 quilômetros de Goiânia. 


Mora debaixo da terra há 25 anos, “cercado por espíritos e conversando com relâmpagos”, como ele mesmo diz. Vive em delírio constante e profundo. “Não aguento casa.”


Antônio foi diagnosticado com esquizofrenia paranoide, uma doença mental caracterizada por delírios e alucinações.


O caso dele ganhou repercussão depois de o juiz Everton Pereira Santos, da comarca de Catalão, ir até o buraco para constatar a incapacidade do homem de voz mansa e determinar sua interdição, como é previsto no Código Civil, além de pensão por morte dos pais. 


A irmã caçula de Antônio tornou-se responsável por ele.


Ele é o quarto filho mais velho do casal de lavradores Júlia Tereza Calado e Cirilo Antônio Calado, que morreram há 3 e 15 anos, respectivamente. No total, são 11 irmãos vivos. Outros três morreram.


 Em busca de uma vida melhor, saíram da Bahia para Nova Roma, no Nordeste goiano, ainda nos anos 1980, quando Antônio estava no auge da juventude e ainda convivia com a família em casa. Hoje é diferente. 


Ele passa o dia na roça, plantando hortaliças. Gosta muito de pimentas. À noite, dentro do buraco, mergulha no breu. 


“Se iluminar o escuro, os espíritos somem”, diz. “Tem tanta gente aqui. Mãe, pai, relâmpago. Eles vêm e descem do céu aqui e acolá. Estão em todo lugar, nas raízes, nas estradas. Só não pode clarear.”


O refúgio do homem esguio fica a 35 quilômetros do Centro de Nova Roma, no meio do Cerrado. No labirinto verde, qualquer estranho se perde sem um guia. Já é noite.


O cachorro de Antônio, o Dourado, é o guardião do templo subterrâneo e dá as boas-vindas a quem se aproxima dali, muito discretamente, sem latidos raivosos, enquanto um filhote de raposa, capturado, faz companhia para seu dono do lado de dentro. 


“Eu vejo voz conversando para tudo quanto é quanto”, relata ele, enquanto seu consciente transcende o universo.


Mesmo desligado do mundo e em contato intenso só com a natureza, plantas e animais, Antônio chamou atenção da equipe do Programa Acelerar, do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJ-GO). 


Em quatro anos, já foram proferidas 22,5 mil sentenças em mais de 27 mil audiências pelo programa, cujo objetivo é agilizar julgamentos diante do crescente número de processos.


Nenhum caso foi considerado tão curioso quanto o de Nova Roma. 


“É muito peculiar porque ele tem uma inteligência acima do normal. É um artista, mas, ao mesmo tempo, vive num mundo físico hostil e num mundo de delírio”, observa o juiz Everton Pereira Santos.


Antônio expressa suas habilidades em cada detalhe. O buraco onde ele vive assemelha-se a uma caverna. Tudo é pensado com o maior rigor possível. Logo na entrada, à esquerda, dois espelhos pendurados. 


À direita, um altar de imagens religiosas e uma coleção de armas que ele mesmo faz, como espingardas, machado e o inseparável facão, além da labanca, barra de ferro que ele usa para abrir buracos. 


O acabamento é todo em argila, sem a pintura convencional. Cada ângulo parece ter sido milimetricamente calculado.


O homem concentra energias do universo. Domina as técnicas de caça e se orienta pelas fases da lua.


Olhando para o céu ele se faz senhor do seu próprio tempo, sem se preocupar com o tempo alheio, o ponteiro do relógio e os dias da semana. O raciocínio, no entanto, é seu maior vilão. Ele se perde nas palavras.


Comunicar-se com coerência é impossível para ele, pelo menos para quem ouve as suas histórias. 


“O trovão, o relâmpago, manda eu falar. Eu sou feliz assim.” Para o homem que prefere o aperto de mão ao abraço, viver junto da natureza tem sido a melhor receita para aproveitar bem os seus dias.


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Fonte: O Popular




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