Alto Paraíso de Goiás: Dona Flor, a mulher que teve 18 filhos e realizou mais de 300 partos



Há 62 anos, Florentina Pereira dos Santos, mais conhecida Dona Flor, hoje com 81 anos, fez seu primeiro parto. Precisou ajudar a mãe na hora do nascimento da irmã e salvou a vida das duas. Sem prever, a reportagem do HuffPost Brasil chegou no povoado de Moinho, próximo a Alto Paraíso (GO), justamente no dia da comemoração deste acontecimento, considerado um divisor de águas na história de Flor.

Mulher, raizeira e quilombola, ela conta que fez mais de 330 partos, teve 18 filhos e é a matriarca da sua comunidade. Até hoje ela recebe gente na porta de casa — localizada atrás de uma igrejinha de paredes claras — vindo de vários lugares do Brasil e do mundo. 


O motivo? Buscar a cura por meio da alquimia de seus remédios naturais feitos a partir da sua conexão com as plantas, Deus (como ela mesmo diz) e a força da natureza.

Dona Flor cresceu em um quilombo antigo, cercado por um muro de pedras que, inclusive, foi construído com ajuda de seu pai. 

Quando criança, ela percorria o Moinho por todos os lados. Se formou mulher em meio a ervas medicinais, perto de cachoeiras e rios. Lado a lado com a força da natureza. Ela conta que, desde pequena, juntava plantas e ervas instintivamente para curar algum mal que acometia a si mesma ou outros. 

Ela mantém em sua mente história preciosas, que constroem a memória de seu povo, com detalhes, como se tudo tivesse acontecido ontem. 

Como quando, em seu quintal, passa as mãos nas plantas e diz para o que cada uma serve. Está tudo ali com ela. Nenhum registro inscrito, só a esperteza e experiência de uma mulher que nunca perdeu a fé. “Está tudo aqui na minha memória, se eu tiver dormindo, acordar e alguém me perguntar, eu sei de tudo. Tá tudo certo”, conta.

A conexão da Dona Flor com a natureza faz parte de quem ela é. Foi um conhecimento adquirido quase que por instinto, mas também fruto de uma curiosidade nata e de uma ânsia de ajudar o próximo. Ela sempre esteve em contato com os produtos do cerrado e ela mesmo testava suas experiencias com as folhas que encontrava pelos caminhos. 


“Quase tudo o que a gente comia era do mato que a minha avó colhia: jatobá, cagaita, lobeira, baru, guariroba. Ela dizia: ‘estou ensinando vocês a comer assim pra serem fortes e saudáveis porque a gente não pode ser criado só com arroz de feijão’. Ela fazia elixir de inhame que era bom pros ossos. E eu queria aprender a fazer, mas ela não deixava. 

Algumas coisas ela me falava, mas outras foi pela intuição mesmo. Uma vez estava gripada e fiz um chá de ‘negra mina’ pra mim. Minha vó ficou falando ‘você vai morrer’. Apanhei rapadura e misturei. 

Dali a pouco comecei a espirrar e saía catarro pela boca, pelo nariz. Deu certo. Sarei, fiquei boa, aí eu criei fé”. E não parou mais.Ela tinha 18 anos quando ajudou no parto da irmã. Escutava da sala a movimentação vinda de dentro do quarto. 

As parteiras que iam auxiliar o nascimento já tinham perdido as esperanças. Ao sentir que não poderia deixar que desistissem, sentiu um ímpeto que a fez ir até lá. “Se Deus não me usasse para ir lá no quarto, minha mãe e a menina tinham morrido. Eu olhei pra minha mãe e pensei ‘se existe coração, o coração dela não existe mais’. 

Então, cacei o coração com as mãos e achei na veia do pescoço. Se aqui tá batendo, a gente pode trabalhar”, e assim ela fez. Ficou ali para tentar ajudar. Flor sequer tinha visto um nascimento antes, só sabia que precisava fazer alguma coisa. E deixou a intuição fluir.

Dona Flor conta a história que, certamente, poderia entrar em um dos enredos de Gabriel García Marquez e a delicadeza de seu realismo fantástico. 


“Minha mãe não tinha força pra expulsar, o bebê descia e subia. Vi as parteiras dizendo que ela ia morrer. Chorei e pensei ‘o que vou fazer? 

Eu já não tenho pai, isso não pode acontecer, Deus precisa fazer um milagre’. Escutei uma voz falando comigo ‘põe ela no joelho’. Não fiz nada e ela falou de novo. Então, foi o que eu fiz. Coloquei ela no meu joelho, senti o cóccix dela. 

Ela botou força, mas a menina subia, então coloquei a mão no topo da barriga pra ajudar. Foi tão forte que ela escapuliu com a placenta e o cordão enrolado no pescoço. Olhei pra ela e pensei ‘que coisa feia, criança nasce amarrada'”, lembra Dona Flor. 

Foram três dias e duas noites de trabalho de parto. Ela acolheu a mãe e pediu ajuda para as parteiras que ainda estavam descreditadas ao que tinha acabado de acontecer.

A mãe de Dona Flor não acreditava que o bebê tinha nascido. E mais, durante toda a gravidez, jurava que estava grávida de um menino. Quando descobriu que era uma menina, não teve a reação esperada. “Falei pra ela, ‘nasceu uma menina. Por que a senhora tá chorando?’. ‘Mais uma mulher pra sofrer no mundo’, ela falou. Eu disse: ‘não fala isso mamãe, ela nasceu pra ser a estrela da casa, pra cuidar de mim e de você'”, relembra. 

De longe, ela viu quando as parteiras cortaram o cordão e fizeram o resto dos procedimentos. “Eu pensei, então é assim que é? Eu agora vou fazer meus partos”, conta. E assim, ela fez. Pariu seus 18 filhos, sem ajuda. “Sozinha, mas com Deus. Eu não tinha paciência, chamei parteira umas 2 vezes e aí ela me perguntava ‘o que eu faço?’ e desisti”. 

Ela é responsável pelo nascimento de seus 18 filhos, mas também de cerca de 300 pessoas na região. Nesse ofício, elatambém fez uso da medicina convencional e impunha a condição de que as mulheres fizessem o pré-natal regularmente nos centros de saúde.Hoje, com 81 anos, Dona Flor não faz mais partos. Teve problemas com os braços por conta de uma queda. O último ela conta que, a pedidos, fez no fim do ano passado. 

“Eu já tinha falado que não ia fazer mais. Eles vieram me pedir e eu consultei com Deus e sabia que o parto dela ia ser fácil. Ela disse que ia nascer no dia 6 de janeiro. Eu disse que ia ser 26 de dezembro e nasceu. Fui lá com a minha bolsa de parteira e deu tudo certo. Fechei o ciclo”, conta. 

Mas ela ainda atende quem chega com dores ou males aparentemente desconhecidos em sua porta. E ainda está em contato com sua intuição, como sempre. 

“Às vezes eu escuto uma voz falar comigo: ‘cuidado’. Aí eu já posso me preparar que vai chegar uma pessoa aqui passando mal”, revela. Ela caminha ao lado de 2 filhos em sua jornada: a filha Deija se tornou doula e o filho Wilson produz remédios naturais junto com ela.

E, de alguma forma ou de outra, ela sempre está presente nos partos que acontecem na região. Muitas vezes, orienta as parteiras que ela mesmo treinou por telefone. Adivinha, inclusive, a hora que o bebê vai nascer. “Outro dia fui orientar duas parteiras que nunca tinha feito parto e elas me ligavam, e diziam: ‘Dona Flor, como eu faço?’. 


E eu dizia: ‘não vai nascer agora, só amanhã’. Dá um café com leite pra ela, não deixa ela ficar deitada, se não ela cansa. Anda pra circulação funcionar. Coloca ela pra sentar no vaso que é o melhor lugar. Dá um banho morno. Até a hora que ela me ligou de volta e eu disse: ‘Agora é hora de fazer um chá de algodão com uma pitada de sal pra ajudar na contração. Depois mais banho e um chá de flor de laranjeira. 

Canta uma musiquinha pra ela sair dessa dor'”, conta.Mulher forte, resiliente, Dona Flor nunca se deixou abater. Em uma das poucas vezes que ficou doente, conseguiu se curar da doença de chagas. Na última vez que foi ao médico, ele pediu pra ela ficar de repouso, descansar, e ela contestou. “Eu disse pra ele: ‘não está certo você me proibir de fazer minhas coisas, ou falar que eu não posso mais trabalhar. 

Eu sou uma mulher que sabe trabalhar, costurar, fazer farinha, rapadura, melado, doce, remédio. Tudo que é de roça, eu sei. Pra que eu tenho que cruzar os braços e não fazer nada?”.

Dona Flor não frequentou a escola, não sabe ler ou escrever, mas adquiriu um conhecimento raro no mundo: o da ancestralidade e da conexão com a natureza. “Vou vivendo e aprendendo. E não perco a fé no povo”. Um de seus sonhos é passar seu aprendizado com partos e plantas adiante. Ela já fez cursos para parteiras e doulas nos últimos anos. 

E, no início de 2018, com ajuda de um grupo de mulheres, começou um financiamento coletivo para construir a “Casa dos Saberes”, onde pretende dar cursos e mentoria de atendimentos a doulas e parteiras. 

“Estou passando meu conhecimento para os mais jovens de que planta é a que cura. A gente se une pra curar as pessoas, principalmente, essa mulherada que tá detonada com tanto remédio. Precisa pegar muito na minha mão. E vamos lutar juntas com Deus e com as ervas”.


Fonte e texto: HuffPost Brasil


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