Seca e opressão: um velório anunciado
Por Marconi M. L. Burum*,
Fiz um poema para falar do porquê não temos mais água em abundância nas nossas torneiras; nos nossos rios.
Para falar desse calor anormal que não existia nos tempos dos meus avós. Para falar do ser humano: sua ganância, sua inversão de lógicas e de valores; sua auto-mortificação.
O relato histórico sobre os primeiros homens-societários na Terra se fundaram na vertente de seu viver sob a lógica do chamado “escambo”. Trata-se – falando bem rudimentarmente – do início das propriedades familiares e dos processos de formação civilizatória em cujo núcleo da questão era a sobrevivência alimentar.
Aliás, até hoje o ser humano somente vive se se alimenta. Essa é uma condição fisiológica que não há como fugir. Somos limitados. Nosso corpo sem água e sem comida simplesmente sucumbe. Morremos sem alimentos. Simples assim.
Pois bem! O escambo era a motriz econômica sofisticadíssima para uma JUSTA distribuição dos alimentos.
Para explicar bem didaticamente, imaginemos você e eu, vizinhos, cada um com um pedacinho justo e necessário de terra (tipo: uma chácara), em que você planta mandioca e arroz; eu, crio galinhas. Para que todos nós comamos arroz, mandioca, carne de galinha ou ovos, trocamos nossos produtos de forma justa (a redundância dessa última palavra é proposital).
Por muito tempo fizemos assim: criávamos uma, ou duas vaquinhas: dali o leite, o queijo e a coalhada. E uma troca simpática por beterraba, feijão ou o que fosse possível produzir para a sobrevivência humana (Segurança e Soberania Alimentar).
Ocorre que certo dia da humanidade, um espertalhão qualquer tratou de plantar mais arroz que fosse o necessário para a troca com o vizinho. Até aí, nem havia problemas.
O espertalhão foi procurar algum vizinho que estava doente, acamado, que não tivesse produzido nada, mas que algum bem material pudesse lhe dar pelo arroz que fora excedente em sua propriedade. E se nada mais tivesse para trocar, não haveria problema: o espertalhão logo poderia deixar a “conta pendurada” para um pagamento (troca) posterior.
O espertalhão ampliou ainda mais seu plantio de arroz. Encontrou um povoado que não tinha terra apropriada para a lavoura. Terra ácida aqui; terreno rochoso ali: era hora de ganhar os mercados dos povoados mais distantes. Para isso, sua pequena chácara já não comportava mais o plantio de arroz para atender demandas e aquisições de outros povoados.
Foi que o espertalhão tivera outra “boa” ideia. Lembra-se da dívida do vizinho? Foi lá cobrar. Pediu em troca de todo o arroz que comera, um pedaço “emprestado” do chão. O vizinho emprestou. E já recuperado da doença que o acometera, foi ainda trabalhar na lavoura do espertalhão sob a “troca” de alguns punhados de – mais – arroz.
Com o tempo, somente o pedaço de chão já não dava. Como o espertalhão já tinha muitos empregados fortes (jagunços acomodados) em outras propriedades também meio “endividadas”, tratou de expulsar da chácara o seu vizinho (aquele da doença) e tomou conta de vez daquela propriedade do outro. E assim, sempre mais e mais, ia expandindo seus negócios e terras.
Tornou-se um próspero proprietário de terras (latifundiário), elogiado por vários idiotas servis como o “grande empreendedor”. Afortunado sem saber o quanto, tornara-se! E seus filhos e netos e bisnetos… seguiram “produzindo” para o mundo.
E assim, de forma bem simplista, contei o que milenarmente foi acontecendo até os dias de hoje: homens mais espertos (gananciosos) que não se preocuparam somente em ajudar a alimentar os seus vizinhos; todavia, de ir tomando suas terras para ascenderem ao LUCRO e mais LUCRO e mais LUCRO.
Retomando o cerne do meu poema.
É um pouco do trauma que tenho da ganância humana que faz do Agronegócio, um Além-Subsistência para a necessidade do Além-Lucro (excedente menos necessário que a preservação da Vida e da Natureza).
Tendo viajado de carro ou ônibus pelas estradas que margeiam a rodovia BR 020 (São Desiderio; Luís Eduardo, na Bahia), e a rodovia GO 118, nos entremeios da Chapada dos Veadeiros (a maior reserva de Cerrado AINDA preservada no planeta), e o município de São João da Aliança-GO.
O que vejo são lavouras e mais lavouras e mais lavouras. Nenhum pé de árvore em pé nesses locais ondes os pivôs extraem do lençol freático até a última gota d’água para irrigar a monocultura do milho ou outros insumos alimentares.
Antes eu pensava: puxa!, que povo bom!
Eles produzem tanta comida para alimentar os pobres que não têm o que o comer (e são milhões de famintos nas periferias das grandes cidades, no Nordeste, na Ásia, na África, no mundo; bilhões de miseráveis).
Até que um dia descobri que para não terem perdas de lucro na Bolsa de Valores (alimento ali é mera commodity, e uma saca de comida não é comida; é dinheiro) eles precisam queimar, repito: queimar toneladas de alimentos para conseguir que o preço do produto esteja de acordo com o planejado para o lucro.
Outro porém que encontrei nesse “terror” de destruição, descrevo a seguir. Para manter os bichos (pragas) longe da soja e desses produtos aí que são comercializados na Bolsa, os agricultores modernos (a “chiqueza” da agroindústria; o agrobusiness) jogam em aviões de pequeno porte o agrotóxico, veneno que mata as pragas e gruda na comida que vai para nosso prato.
Ora, no passado, você ouvia falar tanto da doença de câncer como se ouve hoje? Antes era um vizinho sim, nove não, para vermos doenças tão mortíferas que fossem causadas por alimentação envenenada.
Hoje toda casa tem um relato sobre morte por câncer e outras patologias crônicas. (Até morríamos, mas era por falta de saneamento básico e outros descasos dos governos. Hoje, a morte vem rir de nós na colher que levamos à boca.)
Para completar o terror, o veneno que esses imundos soltam nas plantas, são lavados pela água e penetram na terra até chegar ao lençol freático, contaminando as nascentes e os rios que ainda tentam sobreviver para nos depositar a vida a todos nós.
Se ao menos aquele alimento que produzem fosse para distribuir igualmente (na troca não por tanto dinheiro, mas de forma mais justa, por um modelo econômico mais inclusivo que chegasse a todos a comida), talvez até valesse a pena diminuir um pouco as florestas e as águas.
No entanto, para que uns poucos comam e vivam seu luxo em carros de luxo, em restaurantes de luxo, em boçalidades de luxo, a maioria esmagadora dos seres humanos já não têm nem mesmo água para beber direito; e sofrem com as altas temperaturas (aliás, quando não é o calor infernal; são chuvas irregulares que inundam tudo, arrasando tudo pela frente), fruto da destruição das florestas que deram lugar à milhares de quilômetros de soja envenenada – e da desertificação das matas e da vida vegetal e animal.
Segue o poema – chateado.
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Paradoxo na terra
Hemos de calcular os comensais.
A terra está com febre.
Muita dor.
Não plantemos hoje.
Não subsistirá a planta.
Secará.
Raízes. Elas estão todas a expelir
[ sua dor.
Cortaram-nas, todas.
É só um vão.
Um pátio de terra febril.
Só vemos horizontes sem fim.
Não há vida.
Só febre
E raízes mortificadas.
(Era fartura, de certo.
Mas um contar errado.
Não conseguiremos mais
[ comer,
Adiante.)
A terra chorou.
Virou rego. Rio.
Não são mais águas:
São lágrimas e fel.
O canto no bater das pedras
[ é o mesmo.
O que a água conversa conosco,
É a mesma voz calma.
Mas a terra,
Envenenada,
Expeliu lágrimas desarranjadas
[ que correm por dentre
[ o vão, imenso,
De uma terra de horizonte visível,
E totalmente febril,
Tornando-se inútil,
A seguir,
E solitária,
A transladar seu choro
Eternamente empeçonhado.
Os comensais:
Eles se foram,
Após o cálculo
E a falta…
………………………
Notas de Rodapé
Esse poema fiz a partir da simbiose de três cenas que intrigaram meu pensamento, a saber:
1) uma vez, numa Missa da Semana Pascal, ouvi essa palavra “Comensais”. Eu não sabia o que eram os “comensais”… e isso me deixou tão pensativo a conceituar a relação das “Pessoas-que-estão-disponíveis-à-celebração-da-comida”, no sentido de um Ato, um Rito.
Uma forma de viver nos moldes mais justos e arcaicos. Tipo: um escambo moderno, sem que se perca a evolução natural da vida e da humanidade. Entretanto, uma lógica mais harmônica com a Natureza, o chamado “Bem-Viver”, em cuja troca das necessidades humanas respeita a vida dos outros e as plantas, os bichos das florestas.
2) um amigo, ao gradear (passar o trator por) uma terra a plantio de horta orgânica (na Universidade Estadual de Goiás, onde eu trabalho), ensinara-me que não era recomendável se plantar ali por uns 15 dias. Sofri indagando-me o porquê. Na simplicidade de um lavrador, ele me disse: “a terra está com febre!”. “Febre?”, indaguei. “Sim.
As raízes estão mortas. Toque por entre a terra e perceberás que a terra está quente, quente. As raízes liberam calor. A terra, portanto, está com febre”. O Planeta é vida pura e pulsante. Temos de respeitar.
3) fui passar o fim de semana na chácara de um amigo (que agradeço demais os diálogos tão generosos – escambo de palavras – que tanto me ensinaram) na Bahia. Ali em Roda Velha, BR 020. Meu olho gritava. Não. Não pode ser.
É tudo lavoura do Agronegócio (soja, milho, algodão, cada um “na sua”). Onde reside um paradoxo: os caras produzem ao PIB brasileiro. Riquezas. Alimentos. Mas é a morte. É muito veneno. É muita floresta morta. É muita dor.
É rio banhado por química. E nosso estômago: será só doença, a seguir. Portanto, é nosso “Velório Anunciado”!
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* Marconi M. L. Burum. Escritor e professor. Formado em Letras pela Universidade de Brasília (UnB), Pós-graduado em Direito Público pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus.
Foi Secretário de Educação de Cidade Ocidental (Entorno de Brasília). Atualmente é servidor público efetivo pela Universidade Estadual de Goiás (UEG), em Campos Belos.