Haiti: as crianças perdidas de Cité Soleil

Passava das 8h da manhã quando chegamos ao Porto de Waff, bem na periferia de Cité Soleil, a maior e mais violenta favela do Haiti. Dirigimo-nos, através de uns becos e vielas, para o local de uma peixaria comunitária, um dos primeiros projetos sociais da localidade.

Ao longe, coisa de dois quarteirões, podia se ouvir as rajadas de 5,56 mm, calibre das gangues que brigam pelo controle da favela. Depois de uns cinco minutos de uma tensa caminhada, chegamos ao “ancoradouro”. Se Cité Soleil tem todos os adjetivos de uma favela de “quinto mundo”, imagine aquele lugar.

É característica do ser humano se acostumar, se adaptar facilmente aos lugares. E depois de seis meses de Haiti, muita coisa, infelizmente, já parece familiar. Mas aquele espaço, coisa de 500 metros quadrados, cercado por um amontoado de barracos, irrigado por um fétido correr de esgoto, extrapolava toda e qualquer coisa semelhante a um ambiente humano.

O sol forte e o calor, com o cheiro da lama e do lixo, que ornamentava toda a orla, compunha aquela atmosfera pesada. E, misturado aos muitos porcos, estava um punhado de seres humanos sobreviventes de um tragédia social. Do que sobrevivem, isso eu não sei! Não há empregos, áreas de plantação, comércio.

Talvez do mirrado pescado. E entre os adultos, muitas crianças, dezenas delas. A maioria nua ou enfiada em trapos de roupas. Como não se impressionar, não se comover, com a mais indígna vida social de um grupo. Como em qualquer lugar do mundo, os pequeninos logo se aproximam, curiosos com a magia da máquina fotográfica. Três logo se destacam do grupo, tão díspares as suas personalidades e comportamentos.

A primeira delas chama a atenção por sua meiguice e afeto. É uma garotinha de 4 ou 5 anos. Foi uma das primeiras a ser fotografada e a se ver na tela da câmera. A nossa comunicação era por gestos. Ela às vezes dizia algo em creole, inutilmente. Agarrou-se na barra da minha blusa e não mais soltou, nos 30 minutos que passamos em seu habitat.

Como se apegam facilmente e por tão pouco. Parecia agradecida, pelos segundos mágicos proporcionados pela tecnologia.
Cheguei a oferecer-lhe uma caneta BIC de presente, mas foi logo devolvida. Talvez desconhecesse a finalidade do “brinquedo”.

O segundo personagem tinha dois, no máximo três anos. Seu semblante sério, pesado, logo revelaria seu jeito criança, moldado pelo ambiente hostil, violento e insalubre. O tempo todo portava um pequeno objeto de plástico, que manejava como se fosse um revólver. Em todas as fotos, as poses eram como se apontasse a sua arma. E nas suas rápidas escapadas, parecia se duelar com um inimigo imaginável. O que será dele daqui a oito ou dez anos?

E num canto, bem afastado daquele circo, uma pequena lavadeira. Embrenhada, até os joelhos, na maré de lama, com o amarelo de seu vestido se misturando ao multicolorido do lixo. Esfregava, pacientemente, sua peça de roupa, como se estivesse no mais límpido dos rios, atarefada, não nos afazeres de uma criança, mas de uma dona-de-casa. Próximo, uma bacia verde indicava que havia muito mais a lavar do que roupas.

Os insistentes cliques de máquina fotográfica talvez tenham mexido com seus brios e com a sua dignidade. Ela logo se afugentou. Mas as lentes foram mais rápidas e conseguiram eternizar alguns momentos de sua insalubre labuta diária e a piedosa vida das “crianças perdidas” de Cité Soleil.

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