Quilombo aguarda dez anos por titulação em Nova Roma (GO), inclusive com ameça de pistoleiros



Por Por Daniela Carolina Perutti (texto e fotos),  doutoranda em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP).





“Você veio de longe pra fazer pesquisa nesse fim de mundo? Aqui não tem nada não.” A fala de uma funcionária da prefeitura de Nova Roma, surpresa com meu interesse em pesquisar a região, é recorrente entre os moradores dessa cidade sertaneja, localizada no Nordeste de Goiás. 


Em função da falta de perspectiva de emprego ou melhora de vida, a sensação geral é de que em Nova Roma, que conta com cerca de 3.471 habitantes (IBGE, 2010), restaram apenas os velhos, as crianças e os que não têm estudo.


Se a sensação de que a vida local está acabando é presente entre os novarromanos de um modo geral, ela parece ser ainda maior entre os membros da comunidade quilombo Família Magalhães, que vive no extremo norte do município. O grupo é originário do território Kalunga, considerado hoje o maior quilombo do país, com cerca de 8.000 pessoas distribuídas em 42 localidades (Projeto Kalunga Sustentável). 


A área deste, nas proximidades do rio Paranã (quilômetros abaixo do território dos Magalhães), abrange os municípios de Monte Alegre de Goiás, Teresina de Goiás e Cavalcante (confira a localização exata clicando aqui). Os primeiros indícios de constituição do quilombo naquela região datam da segunda metade do século XVIII, em documentos oficiais.


Uma prática narrada com frequência e atribuída aos ditoskalungueiros, sobretudo antes de seu reconhecimento pelo governo federal como quilombola, diz respeito aos constantes deslocamentos entre as serras e vales da região com o intuito de “caçar melhora”. 
“É porque para lá [na área Kalunga] era tudo difícil. Lá é um buraco, o povo sofreu demais. Tinha que fazer a farinha e botar no cargueiro pra ir vender cá em Monte Alegre”, conta Alvina Pereira dos Santos, a matriarca de Família Magalhães.
Foi seguindo essa lógica local de deslocamentos que Pedro Magalhães da Cunha, o falecido patriarca da família, deixou o território Kalunga nos anos de 1940, indo trabalhar como vaqueiro na fazenda Santa Rita. Já Alvina é filha de mãe kalungueirae pai baiano, e cresceu nessa mesma fazenda próxima ao território Kalunga, onde o pai também trabalhava como vaqueiro. Lá, conheceu Pedro Magalhães e com ele se casou.
Após o matrimônio, em meados do século XX, Pedro e Alvina se instalaram no atual território do quilombo, em Nova Roma, a convite de um compadre que já vivia na região, para a realização de um criatório de porco. 
Desde então, nunca mais saíram daquela localidade, onde viveram da caça, pesca, roças e pequenas criações, além da venda de produtos locais para trabalhadores do garimpo de Pedra Branca, instaurado em área vizinha entre os anos 70 e o início dos anos 90. Atualmente, a família conta com cerca de 100 pessoas e já está na quarta geração.


Perda gradual de território

O grupo foi perdendo sucessivamente o território que ocupava para supostos proprietários, ficando confinado a uma pequena faixa de terra. 
Um dos momentos mais críticos foi no início dos anos de 1980, com o aparecimento de um fazendeiro paulista que alegava ser dono da área e requeria que os moradores deixassem o local. Ele realizou grande devastação ambiental, derrubando cerca de 6 km de mata nativa para plantar arroz. 
Não obtendo sucesso em seu negócio, abandonou aquelas terras devastadas e nunca mais retornou, conforme detalhado no “Relatório antropológico de reconhecimento e delimitação do território da Comunidade Quilombo Família Magalhães”, feito por Roberto Almeida em 2007 para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Já em 1992, os Magalhães receberam a visita intimidadora de um advogado, Osmani Barreto dos Santos, representante dos herdeiros do suposto último comprador daquela propriedade. 
O grupo ficou surpreso, já que nunca havia visto tal fazendeiro, tampouco seus herdeiros, naquelas terras. Para José Magalhães, filho mais velho de Alvina, é difícil entender o “mundo da lei”, no qual alguém pode ser dono de uma terra sem nunca nela ter plantado, tampouco pisado.
Para José Magalhães, o filho mais velho, é difícil entender o ‘mundo da lei’, no qual alguém pode ser dono de uma terra sem nunca nela ter plantado, tampouco pisado
Osmani passou a intimidar os Magalhães, que relatam ameaças com armas de fogo, roubo de alimentos das roças e derrubada de cercas, além de apeamento (amarrar as patas) do gado. 

Segundo os moradores, ele atuou como pistoleiro e chegou a expulsar outros posseiros não quilombolas que viviam pacificamente em áreas vizinhas. Além disso, os quilombolas sofreram duas ações de despejo movidas pelo advogado em questão e quase foram efetivamente expulsos das terras que habitavam, o que também é contado no “Relatório antropológico de reconhecimento e delimitação do território da Comunidade Quilombo Família Magalhães”, de Roberto Almeida.

Direitos

Com o apoio de vizinhos e políticos locais, o grupo tomou conhecimento de que, por serem quilombolas, possuíam direito à terra conforme disposto no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitória (ADCT). Em 2004, ao recorrer a um procurador da república e narrar a situação, foram orientados acerca de seus direitos. 
Assim, expediram a certidão de autorreconhecimento como quilombolas pela Fundação Cultural Palmares. Na mesma época, foram ao encontro do então presidente Lula, que esteve em evento no território Kalunga, e lhe entregaram um ofício assinado pelo então prefeito, vice-prefeito e vereadores novarromanos narrando a situação que o grupo quilombola sofria. 
Segundo o relato de José Magalhães, no mesmo dia o então presidente teria enviado uma resposta à prefeitura, dizendo que tomaria providências sobre o caso.
Ainda em 2004, Osmani foi assassinado, e até hoje não se sabe a identidade do mandante. Após a morte do advogado e ao final das ações de despejo, os supostos herdeiros ficaram com parte das terras que disputavam com Família Magalhães, aquelas nas quais o falecido advogado já havia conseguido expulsar algumas famílias não quilombolas.


Morosidade do Estado

Faz dez anos que a comunidade Família Magalhães foi reconhecida pelo governo federal como quilombola, tendo recebido a certidão de autorreconhecimento pela Fundação Cultural Palmares. 
Apenas em 2006 o Incra abriu o processo de titulação do território, tendo concluído, no ano seguinte, o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação da área, etapa inicial do processo (clique aqui para maiores informações sobre como se titula uma terra quilombola).
Após anos de morosidade, em 2012, a presidenta Dilma publicou decreto para desapropriação dos três imóveis sobrepostos à área a ser titulada. 
Dois dos proprietários a serem desapropriados manifestaram o desejo de “vender” suas terras ao Incra, sendo que um deles, segundo os Magalhães, procurou o órgão oferecendo sua propriedade para desapropriação.
Ainda que conte atualmente com uma situação favorável e poucas propriedades a serem desapropriadas, até julho de 2014 a ação de desapropriação não havia sido ajuizada, e o processo encontrava-se paralisado. 
O Incra alega que ainda será necessária a realização de uma vistoria no território, para verificar os títulos incidentes e possíveis posseiros na área, antes de proceder o ajuizamento da ação, primeiro passo à desapropriação. No entanto, quase dois anos se passaram desde a assinatura do decreto sem que tal vistoria tenha sido realizada.

Consequências irreparáveis

Enquanto isso, a comunidade sofre as consequências pela não titulação de suas terras. Orientada por agentes governamentais, ainda em 2004, a não mexer substancialmente no território, de modo a evitar novos conflitos, ela deixou de fazer roças maiores, restringindo-se a pequenas plantações no quintal de cada casa. 
Na falta de alternativas sustentáveis de geração de renda e acesso a crédito, que o título da terra poderia facilitar, jovens e adultos quilombolas têm abandonado o território, migrando para Brasília, Goiânia e cidades vizinhas em busca de emprego e alternativas de subsistência. “Daqui a pouco, só vai sobrar velho e criança”, sentencia Domingas da Cunha Santos, uma das filhas de Alvina.
Para piorar a situação, os quilombolas ainda presenciam, em seu território, atividades irregulares de extração de areia, degradando ainda mais a área, isso sem levar em conta a pesca predatória ali realizada há décadas por terceiros ‒ uma queixa constante é a de que os peixes do rio estão acabando. Diante de tudo que já passou, a família não se sente segura para se defender desse tipo de prática.
Os descendentes de Alvina já não sabem mais o que fazer. No início do ano, realizaram reunião com técnicos do Incra na qual, segundo a quilombola Isabel Pereira dos Santos, representantes do órgão teriam dito que a vistoria seria iniciada ainda no primeiro semestre de 2014. 
Até o momento (4 de julho de 2014), eles sequer estiveram no local para o andamento dos trabalhos. Em março, o grupo mandou um abaixo-assinado para o superintendente regional do Incra em Brasília, Marco Aurélio Bezerra da Rocha, narrando a morosidade sofrida e solicitando que a ação de desapropriação fosse ajuizada ainda no primeiro semestre. Não obtiveram qualquer resposta por parte do superintendente.
Esse constitui exemplo de um território considerado simples de ser titulado ‒ conforme enunciaram técnicos do Incra aos membros da família ‒, mas que a morosidade produz consequências irreparáveis para o grupo. Vale dizer que o estado de Goiás não possui nenhuma terra titulada pelo governo federal, e 19 territórios aguardam pela titulação. Apenas 7% das cerca de 3.000 comunidades quilombolas estimadas no Brasil receberam o título (integral ou parcial) de seu território. 
No governo Dilma, o ritmo de titulações ficou ainda mais lento, com apenas quatro terras parcialmente tituladas pelo Incra (dados da Comissão Pró-Índio de São Paulo). Enquanto isso, Alvina, hoje com mais de 90 anos, sonha em ainda estar viva para ver seu pedaço de chão, de seus filhos, netos, bisnetos e tataraneta, enfim titulado.
Publicado Originalmente no Repórter Brasil



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