A dor solitária de Lucia





Por Ancelmo Goes, de O Globo


Já se passaram dois anos e quatro meses desde que a vida de Lucia Hippolito (foto), a cientista política e comentarista da CBN, virou de cabeça para baixo. 


Em abril de 2012, quando se preparava para voltar ao Brasil depois de uma temporada agradável em Paris com o marido, Edgar Flexa Ribeiro, tentou se levantar da cama, mas as pernas não se mexiam. 


No dia seguinte, já diagnosticada como portadora da síndrome Guillain-Barré, doença autoimune que leva à perda da habilidade de grupos musculares, descobriu que era prisioneira no próprio corpo. Nada mexia. 


Só os olhos e a cabeça, em movimentos lentos para os lados. 


O pulmão parou de funcionar. Foi entubada. Passou 47 dias deitadas na cama do Hospital Raymond Poincaré, nos arredores de Paris, olhando para o teto e, nos momentos de mais desespero, torcendo para morrer logo e acabar com aquele suplício. 


“É uma dor solitária. A gente acorda e não quer abrir o olho. A gente abre o olho e não quer continuar vivendo aquilo. Não adianta o outro dizer que vai dar tudo certo. A gente só pensa que vai dar errado”, conta, aos 64 anos, sentada na cadeira de rodas, no seu apartamento em Ipanema, tentando controlar as mãos enquanto bebe um cafezinho. 


Mas, ainda bem, está dando tudo certo. Dia 11, ela fará uma palestra na Casa do Saber O GLOBO. 


Lucia ainda não consegue andar. Mas parou de pensar em morrer. Está feliz porque hoje, pela primeira vez desde que ficou doente, vai cozinhar um risoto de rabada com a ajuda da enfermeira que fica 24 horas ao seu lado. 


É como diz Edgar, com quem Lucia está casada há 42 anos: “Todo dia ela faz uma coisa que não fazia na véspera.” Lucia se emociona. “Nem que seja o dedinho da mão que levanta um milímetro a mais do que antes”, diz ela. 

Como você se sente hoje? 


Muito bem, apesar de tudo. Não ando, as mãos ainda estão tortas, mas estou feliz porque faço progressos todos os dias. A síndrome de Guillain-Barré tem este lado animador. É uma conquista cotidiana. No início, as dores eram lancinantes. É como se os nervos estivem todos expostos. 


Como foi receber o diagnóstico? 


Quatro horas depois de entrar no hospital, eles me deram o nome da doença e me disseram que eu ia piorar muito, que depois eu ficaria um período estável e, mais tarde, começaria a melhorar lentamente. Fiquei na cama, sem movimentos, entubada. Desenvolvi um jeito de falar com o Edgar: ele me mostrava um papel com todas as letras e números. E ia indicando letra por letra. Eu piscava o olho para dizer “sim” e virava a cabeça para o lado para dizer “não”. E assim eu ia construindo as palavras. 


E o que você dizia? 


Que estava feliz por ele estar ali do meu lado. Somos casados há 42 anos e ainda achamos graça um no outro. Ele parou a vida dele por mim. Isso é inestimável. 


O que provocou a doença? 


Os médicos não sabem. Uns dizem que pode ser provocada por vacinas. E eu tinha tomado quatro vacinas num dia só, seis meses antes. Também pode ser detonada por um estresse violentíssimo. Eles não sabem direito. É desesperador. Tinha dias em que eu queria morrer. De madrugada, ficava sozinha ouvindo o silêncio do CTI. Não tinha ninguém para me dizer que eu iria melhorar. Emagreci 20 quilos, mas não recomendo esse spa (e cai na gargalhada). 


O senso de humor continua afiado. 


Ah, sim! É o que salva a vida da gente. Mantive o humor e me apoiei no Edgar. Eu quero voltar a andar. Hoje, eu consigo dar seis passos com o andador. Faço fisioterapia todos os dias, tenho sessão com a fonoaudióloga e, é claro, faço psicanálise, se não, não dá para aguentar. Tomo remédio para dormir porque eu não posso me mexer. E tomo antidepressivo para encarar tudo isso. 


Passa pela sua cabeça não voltar a andar? 


Passa. E é muito duro. Hoje eu tenho dependência total. Isso me incomoda muito. Chorei a primeira vez em que um enfermeiro me deu banho. Voltar a andar é o meu sonho. Já não penso mais em morte. Gosto da vida. Viver é muito difícil, mas é bom demais. Quando a gente encara uma doença, percebe que não tem controle sobre as coisas. 


Ao pensar na morte, você tem a chance de pensar: que vida é esta que eu levo? Antes da doença, eu trabalhava 12 horas por dia. Dormia sempre com a cabeça a mil. Não quero mais isso. Hoje eu comemoro pequenas conquistas. Fico feliz porque consigo assoar o nariz. Ainda não penteio o cabelo, mas tiro o fio que cai na testa. Não dá para escrever direito. Mas assinei meu título de eleitor.


Fonte: O Globo

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