TRF-3 dá bronca em anarquista pacifista e o manda cumprir serviço militar

Um médico tentou se safar do serviço militar obrigatório alegando ideais anarquistas “calcados no pacifismo e antimilitarismo”, mas não contava com a simpatia de um desembargador federal pelo assunto, que evidenciou o absurdo da alegação.


“Talvez pudesse considerar a mim como anarquista, porque muito aprecio um escrito de Bakunin”, disse o desembargador Peixoto Jr. Reprodução

Contra ato do comandante da 2ª Região Sudeste, o recruta impetrou Mandado de Segurança na Justiça Federal para suspender a sua convocação para prestar serviço militar como profissional da área de saúde já que sua “liberdade de consciência” não o permitia.

O juízo da 14ª Vara Federal em São Paulo deferiu o pedido do médico, entendendo que “o imperativo de consciência é um direito fundamental, e a inexistência de serviço alternativo ofertado pela Administração Pública militar importa na impossibilidade da incorporação”.

A União recorreu. Alegou que “mesmo se dizendo anarquista, o impetrante estudou em instituição de ensino pertencente ao Estado, o que é contrário a essa corrente filosófico-política; que, segundo manifestação do Ministério Público Federal, na página pessoal do impetrante no Facebook, há manifestações políticas que em nada se relacionam com o anarquismo; que atividade para a qual ele foi convocado é de natureza preponderantemente médica”.

Subiram os autos ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região (SP e MS), à mesa do desembargador federal Otávio Peixoto Júnior, que desmascarou o pseudo-anarquista. Sobram motivos para negar credibilidade ao impetrante, disse o desembargador.

“[O impetrante alega que] filia-se à corrente filosófica do Anarquismo, cuja origem remonta aos antigos gregos (estoicos), tendo sido determinante para o seu surgimento como doutrina moderna, o pensamento secular iluminista, particularmente a elevação da liberdade proposta por Jean Jacques Rousseau. 


Considera-se William Godwin o preceptor do pensamento anarquista, embora não tenha sido ele a introduzir essa denominação. Godwin formulou as concepções políticas e econômicas que viriam posteriormente inspirar o filósofo francês Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), considerado o fundador da teoria anarquista moderna”, e segue falando que “As bases da filosofia anarquista são a paz e o amor”, em “antimilitarismo” e “não-belicismo”, em “Anarquismo filosófico” e pretendendo que a Constituição lhe confira a alternativa de não querer “se submeter à vivência militar.”

“Talvez pudesse considerar a mim como anarquista, porque muito aprecio um escrito de Bakunin, tanto que, impresso na contracapa, deixo o livro na estante com a capa virada para a parede para mais fácil e pronta visualização do texto que não raro prazerosamente releio: 


‘Sou um amante fanático da liberdade, considerando-a como o único espaço onde podem crescer e desenvolver-se a inteligência, a dignidade e a felicidade dos homens; não esta liberdade formal, outorgada e regulamentada pelo Estado, mentira eterna que, em realidade, representa apenas o privilégio de alguns, apoiada na escravidão de todos; 

(…) só aceito uma única liberdade que possa ser realmente digna deste nome, a liberdade que consiste no pleno desenvolvimento de todas as potencialidades materiais, intelectuais e morais que se encontrem em estado latente em cada um (…).’, escreveu aquele sim verdadeiro anarquista”, disse Peixoto Júnior.

Continua: “Não vou discutir filosofia, política e história com o impetrante, não devo debater sobre cidadãos gregos liderados por Zenão que se reuniam num pórtico de Atenas, onde o fundador da escola lecionava sobre a ataraxia. 


Rousseau não era anarquista, William Godwin não conheço (e procurar agora no Google pra mim não vale) mas Proudhon não poderia ignorar, autor da célebre frase afirmando que ‘A propriedade é um roubo’, que também bradou esta, que fui buscar no meu dicionário filosófico: 

‘A igualdade ou a morte’. Quem falava assim não pregava ‘paz e amor’ e se divergências haviam sobre meios revolucionários ou não, não se tratava de pacifismo. Estranha filiação essa a um ‘anarquismo pacifista’, ressalvado o uso da palavra ao que é estilo de vida, talvez presente em Woodstok, mas era o movimento hippie, e o impetrante não vende peças de artesanato na praça.”

“(…) admitir que qualquer ‘vassalo’, na linguagem de Rousseau em seu Do Contrato Social possa desses se livrar com meras e ainda incongruentes e inverossímeis alegações de filiação a exótica corrente de ‘anarquismo paz e amor’ passa dos limites”, continua o desembargador. 


“Como brotou e quanto tempo foi necessário para forjar-se da miscelânea de doutrinas indo dos estóicos ao socialismo de Proudhon uma consciência tão fortemente blindada?”

A procuradora regional da República Rosane Cima Campiotto também apresentou argumentos contra a liberação do médico. 


“A objeção de consciência é oposta em face da sociedade, podendo ser caracterizada como uma regra de exceção, capaz de afastar o princípio da igualdade. 

Destarte, a objeção de consciência não se constitui em algo íntimo, privado, que só diga respeito ao invocante e que esteja fora do alcance de qualquer juízo de avaliação. Ao contrário, a objeção de consciência deve ser relevante e objetivamente mensurável. Não basta, portanto, a mera invocação ou, mais ainda, qualquer invocação.”

“Não poderia eu me posicionar de outro modo senão pela denegação da ordem”, foi o voto declarado e divergente do desembargador da 2ª Turma.

“Entender que a mera ‘alegação’ constante do tipo legal não suscita confrontação ou averiguação é simplificar o processo interpretativo em curso, já que o fim social daquela norma é estabelecer a isonomia de tratamento, onde os desiguais devem ser desigualmente albergados pelo direito, mas, para tanto, é necessário que se demonstre sua situação de desigualdade”, acompanhou em voto retificador o relator, desembargador Cotrim Guimarães, endossado também por Souza Ribeiro, por outros fundamentos.

Previsão constitucional


O direito fundamental posto em discussão está estabelecido no artigo 145, parágrafo 1º, da Constituição Federal, relativo à possibilidade dos cidadãos deixarem de prestar serviço militar obrigatório por “imperativo de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou política”, para o fim de “se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar”. 

A dispensa é direcionada para as atividades militares, propriamente ditas, vale dizer, aquelas que digam respeito, essencialmente, com o treinamento e prática de guerra.

Esse direito fundamental foi regulamentado pela Lei 8.239/91, que no artigo 3º estabelece as condições para seu exercício pelos cidadãos e também define o serviço alternativo àqueles que invocarem o imperativo de consciência para se eximirem das atividades essencialmente militares.

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Apelação 0017424-78.2014.4.03.6100


Fonte: Conjur

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