População de Cavalcante (GO) resiste à tentativa de privatização do Parque Lava Pés: “Não vamos entregar o que é nosso”

Em meio à crescente valorização imobiliária da Chapada dos Veadeiros e à expansão de empreendimentos de luxo na região, um movimento de resistência popular em Cavalcante (GO) reacendeu a defesa de um dos espaços mais simbólicos do município: o Parque Municipal do Lava Pés.

A ameaça de privatização do local mobilizou moradores, ambientalistas e entidades jurídicas, em uma batalha que envolve memória coletiva, disputas políticas e suspeitas de interesses econômicos milionários.

O ecologista Heldney Costa Coelho, nascido e criado em Cavalcante, tem sido a voz mais ativa na denúncia do que considera uma tentativa de “entregar, a preço de banana, um patrimônio público à especulação imobiliária”.

A área em questão, hoje protegida por lei, foi supostamente “doada” pelo atual prefeito Vilmar Kalunga (PSB) ao morador Evangelino Moreira dos Santos. Para Heldney, a medida abre caminho para a venda do terreno ao grupo Majulê, conhecido por resorts com diárias de até R$ 3 mil na região.

“É um absurdo entregar o Parque Municipal para virar empreendimento de luxo. O Lava Pé é do povo de Cavalcante”, protesta Heldney.

Da servidão pública ao símbolo de resistência

A história do Parque remonta à década de 1960, quando o terreno foi doado pelo Estado ao município para fins de uso coletivo.

“Naquela época, Cavalcante tinha apenas três ruas e começava justamente na margem do Lava Pés”, relembra Heldney. O local, segundo ele, servia como ponto de descanso para viajantes e seus animais, além de abastecer a comunidade com água potável e servir como espaço de convivência e lazer.

“Costumo dizer que o rio amamentou gerações de Cavalcante com seu leite cristalino. Era lá que minha mãe enchia potes de água, que as lavadeiras batiam roupa e que as crianças aprendiam a nadar”, relembra o ecologista.

A primeira tentativa de privatização aconteceu em 1994, quando o então prefeito José Leite tentou vender a área a um empresário do setor de mineração.

Sem respaldo jurídico ou político, Heldney liderou um movimento popular inédito na cidade. Lavadeiras com bacias na cabeça e jovens com trajes de banho marcharam pelas ruas em defesa do Lava Pés.

A mobilização culminou na criação de uma zona de servidão pública, mais tarde transformada em Parque Municipal por decreto – ironicamente assinado pelo mesmo empresário que tentou comprar o terreno.

A denúncia: doação suspeita e interesses ocultos

Três décadas depois, o temor se repete. Desta vez, a área foi supostamente transferida, sem ampla consulta pública, para Evangelino Moreira dos Santos.

Para Heldney, trata-se de uma “doação irregular”, articulada para viabilizar uma futura transação com o Majulê. A movimentação foi suficiente para reunir mais de 250 assinaturas em um abaixo-assinado popular, exigindo a anulação do ato administrativo e o respeito à função pública do parque.

“Área pública não é mercadoria”, afirma o manifesto.

Segundo Heldney, a tentativa de legitimar a posse incluiu a construção apressada de uma estrutura de alvenaria no terreno. “É um barraquinho de dois por três metros, com uma porta e sem janelas, feito às pressas para justificar a ocupação”, denuncia. O fornecimento de energia elétrica também gerou questionamentos, já que a conta permanece zerada, indicando ausência de uso efetivo.

A resposta do Majulê e a investigação do MP

Diante das acusações, o grupo Majulê negou qualquer envolvimento com o episódio.

Em nota oficial, a empresa afirmou que não possui “qualquer relação com a administração ou uso da Cachoeira Lava Pés” e reiterou que todas as suas atividades ocorrem em “áreas privadas, com registros legais e licenças dos órgãos competentes”.

Apesar do posicionamento, a desconfiança permanece entre os moradores. “Todo mundo sabe que o Evangelino não vai ficar com esse dinheiro. Sabemos como essas coisas funcionam em época de campanha”, sugere Heldney, levantando suspeitas sobre articulações político-eleitorais.

A denúncia foi formalizada no Ministério Público de Goiás, que instaurou procedimento para apurar a legalidade da doação e os interesses por trás da possível transação. A escritura, segundo Heldney, teve seu registro suspenso após pressão da comunidade e alertas enviados aos cartórios locais.

Parque com plano de manejo e participação popular

O Parque Municipal do Lava Pés conta com Plano de Manejo, estudos técnicos de fauna e flora e ampla participação comunitária. “A cidade inteira se envolveu. Tinha sala de aula estudando o parque, técnicos fazendo levantamento ambiental, antropólogos, geólogos, todo mundo participando”, lembra o ambientalista.

Um detalhe chama atenção: o atual prefeito, acusado de viabilizar a doação, participou do processo de elaboração do plano quando ainda era estudante. “O nome dele está lá, na lista. Ele sabe o que esse parque representa para Cavalcante”, afirma Heldney.

A luta continua

Para a comunidade, a tentativa de desmembramento do parque é vista como o início de um processo de elitização da natureza local. “Hoje é o Lava Pés. Amanhã, qual será a próxima cachoeira com entrada paga? Onde nossos filhos vão aprender a nadar?”, questiona o ecologista.

Enquanto o processo é investigado pelo MPGO, a população segue mobilizada. A luta pelo Lava Pés se tornou um símbolo de resistência frente à especulação imobiliária na Chapada dos Veadeiros. “O Lava Pé é nossa identidade, nossa história, nosso sustento emocional. Não vamos aceitar que seja vendido como se fosse um terreno qualquer. A natureza é patrimônio de todos os seres vivos”, conclui Heldney.