Diário do Haiti: As crianças perdidas de Cité Soleil


Especial Haiti, por Dinomar Miranda* (Texto escrito no diário em 27 de novembro de 2006, às 20h)
periferia de Cité Soleil, a maior e a mais violenta favela de Porto Príncipe, a capital do Haiti.
Dirigimo-nos, através de uns becos e vielas, para o local de uma peixaria
comunitária, um dos primeiros projetos sociais da ONU na localidade, depois de décadas sob o domínio de perigosos bandos armados.
de dois quarteirões, podia se ouvir as rajadas de 5,56 mm, calibre dos vários grupos que brigam pelo controle da favela.
Depois de uns cinco minutos de uma tensa caminhada, chegamos ao
“ancoradouro”. Se Cité Soleil tem todos os adjetivos de uma favela de
“quinto mundo”, imagine aquele lugar.
É característica do ser humano se acostumar, se adaptar facilmente aos lugares.
E depois de seis meses de Haiti, muita coisa, infelizmente, já parece familiar.
Mas aquele espaço, coisa de 500 metros quadrados, cercado por um amontoado de
barracos, irrigado por um fétido correr de esgoto, extrapolava toda e
qualquer coisa semelhante a um ambiente humano.
O sol forte e o calor, com o cheiro da lama e do lixo, que ornamentava
toda a orla, compunha aquela atmosfera pesada.
E, misturado aos muitos porcos, estava um punhado de seres humanos
sobreviventes de um tragédia social sem precedentes. Do que sobrevivem, isso eu não sei! Não há
empregos, áreas de plantação, comércio.
adultos, muitas crianças, dezenas delas. A maioria nua ou enfiada em trapos de
roupas. Como não se impressionar, não se comover, com a mais indigna vida
social de um grupo.
Como em qualquer lugar do mundo, os pequeninos logo se aproximam, curiosos com
a magia da máquina fotográfica. Três logo se destacam do grupo, tão díspares as
suas personalidades e seus comportamentos.
garotinha de 4 ou 5 anos. Foi uma das primeiras a ser fotografada e a se ver na
tela da câmera. A nossa comunicação era por gestos. Ela às vezes dizia
algo em creole, o dialeto local, inutilmente.
mais soltou nos 30 minutos que passamos em seu habitat. Como se apegam
facilmente e por tão pouco. Parecia agradecida, pelos segundos mágicos
proporcionados pela tecnologia.
devolvida. Talvez desconhecesse a finalidade do “brinquedo”.
semblante sério, pesado, logo revelaria seu jeito criança, moldado pelo
ambiente hostil, violento e insalubre.
de plástico, que manejava como se fosse um revólver. Em todas as fotos, as
poses eram como se apontasse a sua arma. E nas suas rápidas escapadas, parecia
se duelar com um inimigo imaginável.
O que será dele daqui a oito ou dez anos?
lavadeira. Embrenhada, até os joelhos, na maré de lama, com o amarelo de
seu vestido se misturando ao multicolorido do lixo.
pacientemente, sua peça de roupa, como se estivesse no mais límpido dos
rios, atarefada, não nos afazeres de uma criança, mas de uma dona-de-casa.
Próximo, uma bacia verde indicava que havia muito mais a lavar do que roupas.
mexido com seus brios e com a sua dignidade, ainda restante. Ela logo se
afugentou. Mas as lentes foram mais rápidas e conseguiram eternizar alguns
momentos de sua insalubre labuta diária e a piedosa vida das “crianças
perdidas” de Cité Soleil.
Nota do autor: provavelmente grande parte das pessoas fotografadas (adultos e crianças) estão mortas, depois do grande terremoto que sacudiu o Haiti em 2010 e matou 300 mil pessoas e deixou 1,5 milhão de desabrigados.
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Note esta criança hatiana também nas outras fotos. O tempo todo aparece em tom ameaçador, como se empunhasse uma arma. É impressionante. |








