Artigo: “Eles e nós, e as palavras”



Por Ilton Pereira, 


O tema é: as palavras de sempre, renovando seus sentidos, significados, desejos para tempos vindouros… querendo sorver de algum lugar dentro de nós, a vontade de que o tempo produza e distribua tais significados, desejos nas vidas de todos nós, nós de lugar qualquer, de todos os lugares… Inclusive, e também, as pessoas que engatilharam, em todos os sentidos, vidas agora pretéritas… não me pergunte por quê!


Ao final então, desta mais uma fatia do tempo vivido, reavivamos estas tão gentis palavras detentoras de energias metafísicas de que tanto necessita o universo humano, para continuar sua saga de projetar novos horizontes, de crer que suas manhãs trarão os sóis e chuvas necessários à temperatura ideal, para que o útero do futuro realize novos brotos reconfigurados de decência, brio, bondade, seriedade, comprometimento para reconstrução de substantivos cruciais à existência saudável da sociedade humana.


Ao proferir tais palavras, esquecemos toda sujeira produzida nas atitudes que agora ficam sepultadas no ano que se esvai, embora, haja fuligens para os novos dias que se aproximam. Afinal, somos parte de um estado humano circunscrito em um Estado gestor da efervescência social. Seja o Estado Político, o Religioso e dentro deles toda uma cultura de esquematizar dominações do espírito, das mentalidades, determinando condutas, pensamentos, possibilidades, misérias e opulências… e dentro de tudo isso o curso das coisas humanas estampadas nas favelas de todo gênero, e, claro, nos oásis em que concentra a riqueza envolta de muros colossais de toda espécie.


O som dessas palavras parece mover-se como uma ventania calma, com a capacidade de remover o fétido aroma das agruras do caminho do ano que se desliga desse fio tênue do presente ao sabor terno dos abraços que se abraçam por meio de todo meio possível, despede-se ao “tim-tim” das taças pelo que elas, as palavras, prometem, como prometeram nos anos que se foram há muito… os brindes repletos das esperanças próprias da eterna promessa de todos os anos do futuro.


Assim, por um instante, esquecemos dos assassinatos de toda ordem: seja do moribundo vagabundo, o à toa das ruas; seja o do mesmo gênero de outra estirpe, de outro clero, outro credo… dos dois lados do muro… Ceifaram vidas, seja pelo sangue que levou o oxigênio que mantinha oxigenada a esperança prometida por aquelas palavras, seja pelo sangue da miséria pujante que corre nas veias sociais das distâncias que há e que se agigantam entre as tais classes que somos, em que pese o peso da beleza daquelas promessas de todos os anos.


Embebidos dessa beleza poética dos substantivos, não fazemos a reflexão de como puderam todos os poderes estabelecidos no tempo da esperança escalpelarem a nossa capa verde para o ano novo. Os poderes que outorgamos, afinal, de nós emana todo o poder, diz a magna carta protetora dos fundamentais princípios que dignificam o indivíduo. 


Contudo, há substantivas controvérsias plurais que jogam por terra o discurso da carta e os que dela provêm. Os guardiões, sejam os que a elaboram, os que executam, os que a partir dela julgam, sitiaram-na em prol de seus interesses privados, estabelecendo a total contradição de seus fins.


Neste momento que se aproxima, diremos emocionados das muitas realizações, dinheiro no bolso, saúde, paz, sucesso… coisas que aprendemos serem necessárias à tal dignidade, tais coisas que se podem ler na tal magna carta. E bem ali naquele instante esqueceremos os escalpes, o verdadeiro sangue que nos tiram a todo momento. Desoxigenação da ética, da moral, o esvaziamento da decência, palavras prostitutas desses proxenetas de plantão que agem sem pudor algum.


Mas eles eram nós, quando reclamavam parte desse pão de mesa tão farta que cultivamos todos os dias pagando os impostos sustentadores ou que deviam sustentar, minimamente, o conceito constitucional do salário mínimo. 


No entanto, quando nós nos tornamos eles, esquecemos, rechaçamos o nós que éramos… assim, não vemos amoralidade alguma no ouro que recobre nossa cama, nosso telhado… nos utilizamos do poder de nossa caneta, para justificar o estupro simétrico à tal carta. Nosso alimento, nossos livros, nossos filhos, nossa casa, nosso paletó… são mais dignos que a dignidade fundamental dos princípios magnos; os princípios agora são outros.


Mas esqueçamos tudo isso, que não é nada, embora não haja nada mais que isso, o que nos leva a crer que, na verdade, é tudo. E então peçamos mais uma taça, façamos mais um brinde, desejemos mais uma vez a felicidade mentirosa mais verdadeira do futuro mais passado que possamos viver, na nova folha do calendário desse tempo desesperançoso… Ainda dirão que isto é apenas pessimismo, que não se pode perder a esperança. 


A esperança é um prato maravilhoso que nos é exibido do outro lado da vitrine, do lado de lá do muro, inatingível, uma promessa eterna, afinal, é preciso manter a escravidão, ela é que é o oxigênio crasso desse poder que se estabelece na instituição humana de ser.


Mas olha, esquecer tudo, por este instante que se aproxima, não é covardia; covardia é não nos alinharmos, não nos permitirmos elos da corrente necessária para fazer valer o poder que de nós emana. É preciso jogar ao chão essas bastilhas tenebrosas desse futuro que vivemos, prometido nos anos que se foram. Porém, não podemos nos tornar eles, ou estaremos apenas repetindo bestialmente as mesmas estruturas clericais de todos os tempos. É preciso que continuemos nós. A questão é, acredito, consciência de quem se é.


Comecemos derrubando a bastilha que somos para nós mesmos. É preciso que o imprescindível para nós seja para além do imediato, ou jamais alcançaremos a dignidade que reclamamos à boca miúda, medrosa e covarde na distância que nos separa dos donos de nossa coragem, que determinam nosso merecimento, nossa simetria, desde que não seja a deles…


Mas tudo bem, que deixemos jorrar todas as palavras carregadas dos sublimes sentimentos, esqueçamos, por este instante, toda essa densa enxurrada de verdades irrefutáveis. Dá cá um abraço desses que se dão no natal, na virada do calendário anual, brindemos nossas almas sequiosas de novos tempos, deixemos que nossos corações profiram o contrassenso institucional da moral, da ética hodierna que jorram das canetas do poder, e então, por fim, desejemos Feliz Natal, próspero Ano Novo…


Ilton Alves Pereira, bacharel e licenciado em História (UFGO), por hora, acadêmico de Direito (FASAM GO), é inquieto com as relações de poder debaixo do sol. 

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