Dois soldados brasileiros foram condenados à morte durante a II Guerra Mundial
O “Dia da Vitória” é comemorado no Ocidente em 8 de maio, data que remete ao ano de 1945, formalizando a derrota da Alemanha Nazista em favor dos Aliados na Segunda Guerra Mundial.
A data é motivo de grandes celebrações, especialmente na Europa, palco do conflito, onde milhões de pessoas perderam a vida no mais feroz conflito da humanidade.
No Brasil, o Estado brasileiro e as Forças Armadas do país também comemoram a rendição e reverenciam a data. O Brasil participou dos dois últimos anos do conflito, ao lado dos Estados Unidos, União Soviética, Reino Unido, França e outros aliados, enfrentando Alemanha, Itália e Japão.
O Japão permaneceu no conflito até setembro de 1945, quando se rendeu após ser alvo de armas nucleares norte-americanas em Hiroshima e Nagasaki.
Muitas histórias já foram contadas e diversos episódios sobre o conflito continuam a povoar filmes, documentários e artigos em revistas e jornais ao redor do mundo. No entanto, um desses episódios é pouco conhecido e compartilhado: a participação da Justiça Militar do Brasil, que de forma volante, no campo de batalha, acompanhou as tropas pelos alpes italianos desde o primeiro dia em que a Força Expedicionária Brasileira pisou na Europa.
Segundo um ofício de 26 de janeiro de 1946, que encaminhou o relatório de atividades da Justiça Militar da FEB ao Ministro da Guerra, General Pedro Aurélio de Góes Monteiro, foram julgados em primeira instância, em território italiano, 274 processos, dos quais 138 sob a responsabilidade da 1ª Auditoria e 136 sob a responsabilidade da 2ª.
Ao Conselho Supremo de Justiça Militar (CSJM), como órgão de segunda instância, coube o julgamento de 130 apelações, ao todo. Foram 17 encaminhadas pelo Ministério Público Militar e 113 pelos Advogados de Ofício, na defesa dos réus condenados em primeira instância. Com relação à sua competência originária, o CSJM não analisou nenhum processo, uma vez que nem oficiais-generais, tampouco coronéis, foram indiciados pelo cometimento de crimes durante a guerra.
Além dos processos judiciais, a Coleção Força Expedicionária Brasileira, pertencente ao Arquivo do Superior Tribunal Militar, inclui diversos documentos administrativos produzidos durante a Segunda Guerra Mundial, como ofícios, cartas, telegramas, portarias, relatórios de atividades, mapas e relatórios de movimento judiciário, além de boletins internos e reservados da FEB.
No entanto, há um processo que se destaca entre tantos outros: os Autos da Apelação nº 21/1945/FEB, que trata da pena de morte aplicada a dois soldados do Exército Brasileiro por dois crimes gravíssimos contra cidadãos italianos.
O estupro de uma adolescente italiana de 15 anos e o homicídio do tio dela, morto a tiros pelos algozes. O processo tramitou na 2ª Auditoria da 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária (1ª DIE FEB) entre 1º de abril de 1944 e 26 de dezembro de 1945 e no Conselho Supremo de Justiça Militar entre 12 de abril de 1945 e 31 de outubro de 1952. O processo possui 69 folhas e está digitalizado e disponível no site do STM.
Indisciplinados
Os dois soldados brasileiros estavam de folga naquele dia 9 de janeiro de 1945 e perambulavam pela região da comunidade de Madognana, perto de Pistoia. Adão Damasceno Paz, de 26 anos, era natural do estado do Rio Grande do Sul.
O outro era Luiz Bernardo de Morais, 21 anos, também gaúcho, solteiro. Ambos serviam no pelotão do QG da 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária (1ª DIE), pertencente à FEB. No Brasil, eles pertenciam a regimentos diferentes no sul do país e não se conheciam antes de embarcarem para a guerra na Itália, mas tinham uma coisa em comum: várias prisões por transgressões disciplinares. Adão Damasceno servia no 1º Regimento de Cavalaria Independente, sediado em Itaqui (RS), tendo sido preso disciplinarmente duas vezes: uma por 8 dias, por ter abandonado o serviço; e uma segunda vez, por 10 dias, por ter agredido um colega de farda.
Em janeiro de 1944, foi incluído no efetivo da FEB, na Companhia do QG da 1ª DIE. No Rio de Janeiro, em agosto de 1944, foi preso novamente por 8 dias por estar embriagado e responder com desatenção ao comandante da guarda. Embarcou para a Itália em 17 de outubro de 1944, do porto do Rio de Janeiro, em um navio de transporte norte-americano. Chegou em Nápoles em 6 de novembro e, em 11 do mesmo mês, foi levado em uma barcaça para Livorno, de onde partiu de caminhão para a área de acampamento da FEB ao norte de Pisa. Dois meses depois, cometeu o crime.
Já o soldado Luiz Bernardo de Moraes ingressou no Exército em 16 de janeiro de 1942, no 2º Regimento de Cavalaria Independente, sediado em São Borja (RS). Em março do mesmo ano, foi preso por 15 dias por ter faltado à parada de serviço e ter faltado com a verdade com o comandante do esquadrão. Baixou várias vezes no hospital por doença. Em 21 de outubro de 1943, foi para Uruguaiana (RS) para integrar um contingente da FEB, que seguiria para a capital do Brasil. Também foi enviado para o Batalhão de Guardas. Chegou ao Rio em janeiro de 1944 e foi incluído na tropa de guerra em 7 de janeiro.
Mas a indisciplina militar voltou a florescer e ele foi novamente preso, por 20 dias, por estar embriagado. Embarcou no navio americano rumo à Itália em 20 de setembro de 1944. Chegou em 9 de novembro e foi transportado para a área de combate em 12 de novembro, no estacionamento da tropa, ao norte de Pisa. Dois meses depois, cometeu o grave crime.
Estupro e morte
Era por volta das 16h do dia 9 de janeiro de 1945, em Madognana, próximo às residências dos familiares da adolescente de 15 anos,Margelli Giovanna. A tia dela, Cantelli Tonina di Bartolomeo, de 26 anos, testemunhou à justiça militar do Brasil que dois soldados brasileiros foram à casa dela na tarde daquele dia. Um moreno, robusto e outro branco, baixo e com pequenos bigodes. Após o convite, sentaram-se na casa para se aquecer do frio alpino. O primeiro conversou com a adolescente Marcelle e perguntou se ela tinha medo. A mesma pergunta foi feita para o filho de Cantelli Tonina, uma criança de 3 anos, e eles chegaram a dar um chocolate de presente para o menino.
Em seguida, os militares começaram a falar entre si, em português, e um deles disse a Margelli Giovanna que ela era muito mal educada e que iria ensiná-la a se comportar bem. A testemunha afirmou também que um dos militares chegou a dizer que os alemães eram ruins, mas os brasileiros eram bons, e então eles foram embora da residência.
Contudo, à noite, por volta das 20h, os mesmos militares voltaram à casa de Cantelli Tonina di Bartolomeo. A família já estava em repouso quando bateram à porta. Na casa estavam a testemunha, o filho dela de três anos, a avó doente, a prima Margelli Giovanna, seu irmão Stefano, além do primo Giuseppe Vivarelli. Stefano abriu a porta e os dois brasileiros entraram. Um ficou na porta e o outro entrou na casa. Luiz, armado com uma metralhadora, atirou contra o lampião da casa.
Com os tiros, Cantelli Tonina disse que ficou amedrontada e fugiu para um dos quartos. Mas Luiz ordenou que ela voltasse para a cozinha. Todos os cômodos da casa estavam escuros. Giovanna, por sua vez, começou a gritar por socorro. Era Adão arrastando-a para um dos quartos.
A tia, aproveitando-se da escuridão, foi para outro quarto, abriu a janela e fugiu. Uma rajada de metralhadora cortou a escuridão durante sua fuga, mas, por sorte, não a atingiu. Ela se abrigou na casa de um tio próximo. Seu irmão Stefano, aquele que abriu a porta, também conseguiu sair correndo. Tonina ouviu outro disparo de metralhadora e recebeu a ordem de seu irmão para ir para outro lugar. Ela seguiu para a casa de Torri Virinia, uma vizinha a pouco mais de um quilômetro do local. De lá, conseguiu ajuda e, junto com um jovem chamado Bonaiuti Nino, foi para a localidade de Cae Ciabate, no comando militar brasileiro, pedir ajuda.
Agarrada por Adão, Margelli Giovanna foi dominada e levada para um quarto, onde foi “deflorada”, segundo os termos dos autos. O segundo acusado, Luiz, ficou na porta da casa vigiando para impedir a aproximação de qualquer pessoa. Mas, em socorro de Giovanna, Leonardo Vivarelli, de 57 anos, se aproximou da casa.
Uma rajada de metralhadora, disparada por Luiz, ceifou imediatamente a vida do camponês italiano. Após terminar o estupro, Adão “deu lugar” a Luiz, que foi ao quarto da menor, enquanto Adão passou a vigiar a porta da casa. A ocorrência chegou ao comando das tropas brasileiras após os carabineiros locais levarem seis termos de declaração prestados pelas vítimas.
Ação Penal
Luiz confessou que mentiu para Adão, pois não conseguiu consumar o crime sexual devido ao estado de embriaguez. A Polícia do Exército agiu rapidamente e conseguiu prender os criminosos, que confessaram os crimes tanto no Inquérito Policial Militar quanto na Ação Penal Militar, iniciada em 1º de fevereiro pela 2ª Auditoria Militar. O órgão de primeira instância da Justiça Militar deslocou-se de Pistoia para Porreta (Itália) para processar e julgar os criminosos.
Na ação penal, figuraram como testemunhas o terceiro sargento Victorio Manganelli, o cabo Renan Alves Pinheiro e o agricultor Galli Sylvio Madognana. Também participaram do processo, na condição de informantes, as vítimas Cantelli Tonina di Bartolomeo, Cantelle Stefano di Bartolomeo e Margelli Giovanna.
O processo, em Porreta Terme, foi distribuído ao juiz auditor da 2ª Auditoria da 1ª DIE pelo general de divisão João Batista Mascarenhas de Moraes, comandante da 1ª DIE, no dia 21 de janeiro de 1945, 15 dias após o crime. A denúncia foi oferecida pelo promotor Orlando Murtinho da Costa no dia 25 de janeiro.
Um laudo médico, datado de 10 de janeiro, atestou a causa mortis de Vivarelli Leonardo. O médico e 2º tenente Enzo dos Santos Trevisani declarou que o cadáver do camponês Vivarelli estava “prostrado em decúbito dorsal, sobre os degraus da entrada da residência, do nº 231, da comunidade Madognana, havendo sob ele e na cavidade bucal grande quantidade de sangue e ferimentos causados por vários tiros. Também havia uma contusão occipital e na região dorsal do tórax, que deixaram impressão de terem sido produzidos pela queda”. A causa mortis foi ferimento por projétil de arma de fogo penetrante do tórax, com lesão dos vasos do pescoço e anemia aguda.
Outro laudo médico também atestou a violência sexual contra a menor. O laudo foi realizado em 16 de janeiro, às 14h, no acantonamento da Companhia de Tratamento, situada junto à ponte Venturina, atestado pelo capitão médico Antonio Lauriodo de Camargo e pelos médicos peritos Thales Miranda Moreira e Enzo dos Santos Trevisani.
Os acusados foram citados judicialmente em 27 de janeiro em Pistoia para comparecerem no dia 1º de fevereiro ao juízo da 2ª Auditoria, às 10h, a fim de serem processados pelos crimes, conforme denúncia do promotor. Na Auditoria, atuaram o juiz auditor tenente-coronel Eugênio Carvalho do Nascimento, o promotor capitão Orlando Moutinho Ribeiro da Costa e o 2º tenente Bento Costa Lima Leite de Albuquerque, como advogado de ofício, com a sessão aberta às 10h30 daquele dia. Na ocasião, a promotoria não requereu diligências, e a defesa não arrolou testemunhas. A sessão foi suspensa às 15h, tendo os membros da Auditoria retornado à sua sede no QG recuado da 1ª DIE, em Pistoia.
Na ação penal, a promotoria pediu a pena máxima, a pena de morte, sustentando que a imputação feita estava provada e que os militares tinham histórico de maus antecedentes e agravantes disciplinares, inclusive por abuso de álcool. A defesa, por sua vez, argumentou que Adão não praticou o crime de violência sexual porque não houve resistência da vítima; para o segundo acusado, o advogado de ofício alegou que Luiz não agiu dolosamente, mas com culpa, quando atirou contra Leonardo Vivarelli, pedindo sua absolvição.
Em 7 de fevereiro, o juiz auditor proferiu sua decisão, considerando os réus culpados e os condenando à pena capital. “Resolvo condenar, como condeno, Adão Damasceno e Luiz Bernardo à pena máxima do artigo 302, III, combinado com o artigo 181, parágrafo 2º, V, do CPM, a qual sendo a morte, pelo homicídio cometido para assegurar a execução de violência carnal, absolver a pena de corrente da prática deste delito, uma vez que dele não resultou o falecimento do agente passivo”.
Apelação ao Conselho Supremo de Justiça Militar
Inconformada com a condenação à morte de ambos os militares, a defesa apelou junto ao Conselho Supremo de Justiça Militar no dia seguinte, em 8 de fevereiro de 1945, argumentando que o juiz auditor não aplicou adequadamente a pena de morte. A defesa alegou que o crime foi praticado na presença do inimigo, diferenciando as situações conforme o estatuto dos militares, o que deveria atenuar as penas. Além disso, a defesa informou que os réus confessaram os crimes, o que deveria beneficiá-los.
O procurador geral no Conselho Supremo, general de brigada Waldemiro Gomes Ferreira, opinou pela confirmação da sentença. “É a conclusão que emerge do artigo 62, que faculta ao juiz desprezar a atenuante da confissão da autoria de crime, ignorada ou imputada a outrem, quando se tratar de delito punido.”
Por sua vez, o relator no Conselho Supremo foi o general Boanerges Lopes de Sousa. O caso foi apreciado e julgado, em sede de segunda e última instância, em 7 de março de 1945, na cidade do Rio de Janeiro, cerca de dois meses após o crime. Na oportunidade, os juízes do Conselho Supremo de Justiça Militar decidiram negar provimento à apelação e confirmaram a sentença de morte aos militares.
Para o relator, a confissão não foi espontânea e resultou de providências tomadas pelo serviço de Polícia Militar da FEB. Argumentou que mesmo havendo confissão espontânea, ao juiz era facultado atender ou não às circunstâncias atenuantes do artigo 62.
“Os crimes foram praticados em zona de efetivas operações militares, devendo ser considerados como praticados na presença do inimigo, exigindo, assim, como muito bem se expressou o auditor que proferiu a sentença, repressão enérgica da justiça com o fim de assegurar, não só a manifestação da ordem e da disciplina, como o respeito e a confiança que as Forças Expedicionárias Brasileiras devem inspirar aos nossos aliados no teatro de operações e junto à população em contato com as mesmas forças,” votou o relator.
A pena de morte não foi cumprida.
Como a Segunda Grande Guerra chegou ao fim, os réus regressaram ao Brasil ainda em 1945. O presidente Getúlio Vargas comutou a pena de morte em prisão pérpetua e depois a 30 anos de prisão. Ambos morreram de morte natural nos anos 1990.
A última execução à morte ocorrida no Brasil ocorreu há quase 150 anos, na pacata cidade de Pilar, na província de Alagoas, em 28 de abril de 1876. Um escravo fora condenado e enforcado por ter matado a pauladas e punhaladas um fazendeiro e sua mulher.