Guardiões da Chapada: voluntários se arriscam e viram noites na guerra contra o fogo

Longas caminhadas em locais de difícil acesso, com equipamentos de até 23 quilos nas costas, noites em claro no meio do mato, limites físico e emocional, estresse térmico e vida em risco.

A rotina de brigadistas voluntários que atuam no combate ao fogo que ameaça o Cerrado todos os anos no período de seca, na Chapada dos Veadeiros, em Goiás, é repleta de enfrentamentos, e, mesmo assim, eles persistem no ideal de salvar o bioma, que atrai turistas do mundo todo.

Os voluntários, no geral, são pessoas que saíram de diversos locais do Brasil, e até de outros países, e escolheram a Chapada para morar.

São indivíduos com formações variadas – do audiovisual à administração de empresas –, que há até pouco tempo não tinham nenhum tipo de contato com incêndios florestais e, de repente, passaram a acumular experiências de até duas noites seguidas no mato apagando fogo e realizando caminhadas de até 20 quilômetros.

“A gente apagava fogo de calça jeans, tênis e com o tapete do carro”, conta a capixaba Giselle Cavati, referindo-se ao início da união de voluntários, em 2017, quando uma onda de incêndios atingiu quase que a totalidade do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros.

Diante da ausência de um batalhão de bombeiros na região – o mais próximo fica em Planaltina de Goiás, a 166 Km de Alto Paraíso –, essas pessoas foram obrigadas a se unir e mudaram a rotina de vida, em função da guerra contra o fogo, especialmente no período de estiagem, quando as ocorrências se proliferam.

Mais de uma centena de pessoas, divididas em diferentes cidades que compõem a região da Chapada, integram hoje a organização Rede Contra Fogo, criada pela sociedade civil para coordenar a ação dos voluntários e agir de maneira integrada no combate a incêndios florestais.

Com financiamento coletivo, pela internet, eles deixaram a “calça jeans e o tapete do carro” para trás e conseguiram comprar equipamentos e melhorar a estrutura, apesar de ainda não terem uma viatura para deslocamento. Eles utilizam carro próprio. Já a realidade continua a mesma, desafiando o Cerrado com incêndios sucessivos, muitas vezes simultâneos, e em diferentes pontos da região.

“Já fiquei quase 48h no mato”

Quando se mudou para Alto Paraíso, em 2014, o paulistano Marcelo Fernandes Pera, de 52 anos, não imaginava que em pouco tempo estaria especializado no combate ao fogo no meio do Cerrado.

Com 30 anos de experiência na área comercial, ele deixou São Paulo para ter uma vida mais perto da natureza. Além da atividade de guia turístico, hoje ele é um dos brigadistas voluntários mais experientes em ação na Chapada dos Veadeiros.

A experiência é tanta que lhe rendeu um contrato temporário de seis meses na brigada do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que fica na vila de São Jorge e que atua, especialmente, nas ocorrências no interior do parque.

Se antes as histórias de Marcelo eram sobre a vivência comercial na cidade grande, hoje elas são sobre situações de enfrentamento ao avanço rápido do fogo no Brasil Central.

“A gente já caminhou 20 Km no meio do mato, à noite, rompendo trilha no peito para chegar até a linha de fogo. As dificuldades são várias: o combate em si, o equipamento que é pesado, o terreno que dificulta o acesso… Já cheguei a ficar duas noites seguidas, quase 48h dentro do mato, porque, às vezes, é tão longe o local que não compensa voltar para a base e depois ter que retornar para continuar o trabalho. A gente só volta quando não tem condição de receber alimentação”, relata.

Motivação

O empenho incansável desses voluntários para salvar o Cerrado está associado, na maioria dos casos, à relação afetiva que eles construíram com o local, mesmo não sendo nativos da região. Acostumada à Mata Atlântica, no litoral do Espírito Santo, onde nasceu e viveu por 30 anos, a professora de Educação Física Giselle Cavati conta que se apaixonou pela força e resistência do bioma do interior do país.

“Na primeira vez que eu visitei a Chapada, antes de me mudar para cá, eu cheguei em um momento pós-fogo. Quando eu passava por campos queimados, eu via a vegetação brotando. Essa força do Cerrado é apaixonante. Fazer parte desse grupo [de voluntários], salvando a Chapada, é uma das coisas mais incríveis que eu poderia fazer na vida”, afirma.

A experiência vivida em 2017, quando ela foi uma das pessoas que liderou o movimento de voluntários para auxiliar no combate ao fogo na região, foi essencial para que ela permanecesse em Alto Paraíso. Na ocasião, Giselle avaliava retornar para Vitória (ES), morar perto da família e do mar, novamente. O resultado do trabalho naquele ano, no entanto, mudou tudo.

“Eu restabeleci a conexão com a Chapada e me apaixonei de novo. A gente criou uma estratégia tão linda para salvar a vegetação. Foi uma estratégia de guerra mesmo, e aquilo me reconectou de uma forma visceral com esse lugar. Se existia limite, eu não sabia qual era. A gente agiu por amor”, diz Giselle.

Desafios e características do fogo no Cerrado

O fogo que se alastra pelo Cerrado, principalmente no período de estiagem, tem características que dificultam o combate. Apesar de não ser um fogo alto, mantendo-se em torno de 1 metro de altura, no máximo, ele se alastra rapidamente, acelerado pelo mato seco e pelo vento veloz que acomete a região entre junho e outubro. Essa combinação gera linhas de fogo quilométricas, que desafiam a capacidade humana de reação.

O ideal seria o combate imediato, mas muitas vezes é preciso esperar o melhor horário para não colocar vidas humanas em risco. Responsável por coordenar a Rede Contra Fogo, o paulista Amilton Sá, morador da Chapada dos Veadeiros há cinco anos, explica que o trabalho de combate, geralmente, é feito no período noturno, devido às características climáticas do local, principalmente às altas temperaturas.

“Geralmente, saímos para o combate às 18h, quando o Sol já abaixou, e só retornamos na manhã seguinte. Isso é quase sempre”, relata.

Durante o mês de julho, quando incêndios de grande proporção atingiram áreas de preservação em São João D’Aliança, onde o fogo avançou em direção à maior cachoeira de Goiás (cachoeira do Label), e também na região conhecida como Pouso Alto, brigadistas vararam a noite no combate às chamas.

“A gente apoia as brigadas do ICMBio e do Prev-Fogo, vinculada ao Ibama. Elas que puxam o plano operacional. Os focos de incêndio, no entanto, são tantos nesta época, e acontecem ao mesmo tempo, em diferentes locais, que a gente acaba apoiando e somando a esse trabalho quase que sempre”, diz Amilton.

Referência local

As brigadas existem, hoje, apenas nas cidades de Alto Paraíso, Cavalcante e na vila de São Jorge. Recentemente, uma foi criada em Colinas do Sul, cujo batalhão de bombeiros mais próximo fica em Minaçu, a 95 Km de distância.

Com o trabalho feito nos últimos anos e a comunicação frequente com a população de todas as cidades que compõem a região, os voluntários da Rede Contra Fogo tornaram-se referência para a comunidade. Eles já chegaram a combater incêndio até em imóvel, dentro da cidade, e são acionados com frequência para auxiliar em ocorrências que fogem da finalidade da organização, como salvar animais atropelados nas rodovias da região.

Fonte: Metrópoles

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