Cubanos deixam Brasil divididos pela vontade de ficar e a saudade. Médica ganha festa de despedida em Teresina de Goiás

O policial apareceu, a vizinha apareceu, a dona da casa ficou o tempo inteiro ao lado. Num clima quase fúnebre, deu um longo abraço no secretário de Saúde da cidade.
Kenia é um dos milhares de médicos cubanos que precisaram deixar às pressas seus postos de trabalho e suas vidas no Brasil – já consolidadas, para muitos deles – em razão da decisão do governo de Cuba de abandonar o Mais Médicos, depois das ofensivas do presidente eleito, Jair Bolsonaro, contra o modelo do programa.
As decisões sobre o destino dos médicos cubanos foram comunicadas em e-mails curtos, disparados diretamente aos profissionais, sem passar pelos secretários de saúde.
Kenia foi pega de surpresa. Seu contrato venceria somente no fim de 2019. Por e-mail, foi avisada da necessidade de voltar a Cuba.
A outra médica cubana que fazia atendimentos em Teresina, Mabel Hernandez Gonzalez, deixou a cidade antes de Kenia.
O improviso e a pressa no retorno surpreenderam o secretário de Saúde do município, Josene Pereira Lopes. Ele planejava uma festa de despedida para as duas. Conseguiu fazer a festa apenas para uma delas.
Kenia não disfarçava a frustração em ter de antecipar o encerramento de um contrato previsto para durar até o fim do ano que vem.
A experiência no Brasil é a segunda dela no plano internacional. Antes, trabalhou como médica em Maracaibo, na Venezuela, entre 2008 e 2011.
– Aqui existe demasiada desigualdade social. É muito diferente do que eu via nas telenovelas brasileiras. Eu tinha outra noção.
Segundo a médica, o primeiro ano no Brasil – de busca por aceitação dos moradores da cidade – foi o mais difícil.
Kenia voltará para sua cidade, Las Tunas, e reencontrará a filha de sete anos, que ficou com os pais. Ela planejava uma visita da filha e dos pais ao Brasil, plano que não foi possível em razão do alto preço das passagens aéreas.
A médica, apesar da contrariedade com o retorno apressado, não critica o modelo adotado para os cubanos no Mais Médicos.
– Ele nos depreciou, mas é a população que vai sentir os efeitos, principalmente da Amazônia, indígenas, quilombolas, que nunca tiveram atendimento médico. Nós não viemos ao Brasil enganados. Assinamos um contrato – afirma Kenia.
O fato de ficarem apenas com uma parte do dinheiro repassado a Cuba pelo Mais Médicos também é minimizado pela médica:
– O governo não pega o dinheiro para eles, mas usa em equipamentos, em saúde, em educação.
Kenia descarta pedir asilo no Brasil e não vê possibilidades de um visto de residência, uma vez que não há facilitadores como ter se casado com um brasileiro.
– Pode parecer pouco, mas em Cuba todos trabalham. Na minha casa, por exemplo: meu pai é professor, minha cunhada é médica, meu irmão trabalha numa estatal de exploração de níquel.
Depois das despedidas que foram possíveis, um carro levou Kenia e uma colega médica que atuava em Cavalcante, cidade vizinha, para Brasília. Os consultórios dela e da outra médica cubana de Teresina de Goiás estão fechados.
– Foi tudo muito rápido, não deu para acomodar nada. Estava esperando as férias, agora estou de volta em definitivo. Mas se uma porta se fecha, outra pode abrir – diz ela.
O secretário de Saúde de Teresina resumiu o clima da cidade diante da saída de cena repentina de Kenia, após o abraço de despedida:
– Uma psicóloga nossa passou num concurso em Nova Roma. É uma cidade aqui do lado. Com Kenia é diferente. Ela está indo para Cuba. Esta deve ser a última vez que nós a vemos.
Fonte: Jornal O Globo