Para se proteger de ameaças, maior quilombo do país, o Kalunga, mapeia território em Goiás


Por Caio de Freitas Paes, de Cavalcante (GO),

Pouco a pouco, a tecnologia se esgueira por entre os vãos das serras entre Cavalcante, Monte Alegre de Goiás e Teresina de Goiás, no nordeste goiano. 


Nos três municípios, está o maior quilombo reconhecido oficialmente no país: o território Kalunga. Hoje, os kalungas estão finalizando um georreferenciamento próprio de suas terras: são mais de 262 mil hectares, reconhecidos há quase vinte anos pelo governo federal, com aproximadamente 1.500 famílias espalhadas por ao menos 39 comunidades no quilombo. 

Para além de sistematizar as informações sobre o solo, nascentes e cursos fluviais – e sobre o perfil dos quilombolas – o objetivo dos kalungas é usar o georreferenciamento para proteger suas terras.

Os quilombolas defendem que, com dados abrangentes sobre o uso do território e sobre sua população, eles vão tornar as terras mais seguras. A iniciativa vai fornecer imagens atualizadas a cada cinco dias de todo o território, o que facilita ações preventivas e pedido de apoio oficial para coibir práticas ilegais de invasores no quilombo. 


Há diversas ameaças rondando o quilombo, segundo o presidente da Associação Quilombola Kalunga, Vilmar Souza:

– Qualquer um pode ver as balsas que extraem minérios ao longo do rio Paranã, o domínio da soja ao redor e a presença de grileiros, que ‘transformam’ um título de terras de 5 hectares em um de 700, sempre pra dentro de nosso território.

Em um momento histórico em que dados – e sua segurança – são poderosas ferramentas, os kalungas garantem que há cuidados específicos para a proteção das informações colhidas. É restrito o acesso ao conteúdo dos questionários socioeconômicos, aplicados por jovens em suas respectivas comunidades, por exemplo.

“O número de usuários que pode extrair e acessar dados é limitado, e trabalhamos com técnicas offline, em formatos muito específicos, para diminuir a exposição”, explica o assessor técnico do georreferenciamento, Elizon Dias Nunes. Geógrafo, ele é especialista em geociências e frequenta as terras kalungas há mais de 15 anos. Dados geográficos do território – como a presença de minérios, formação do solo e nascentes – serão compartilhados com a Universidade Federal de Goiás. Esse é um dos acordos firmados por meio do convênio que viabiliza o georreferenciamento.

Partes do quilombo estão sob disputa fundiária e o projeto lida com informações pessoais da população e detalhes sobre a abrangência de minérios e de espécies nativas muito cobiçadas, como a baunilha do Cerrado. Tal como em outros pontos da Chapada dos Veadeiros, há ameaças como o agronegócio, a mineração ilegal ou a pesca predatória à espreita.

“Os dados preliminares ajudam os kalungas a mapearem as zonas de solo mais rico em minérios como a laterita, usada em ligas para fazer asfalto, ou o ouro – que ainda atrai muita cobiça sobre o quilombo -, e também os cursos fluviais e as nascentes, regiões onde há conflitos latentes – seja pela degradação ambiental ou pela disputa por terra”, diz o assessor técnico do projeto, Durval Mota.

Na área, há mais de 300 nascentes d’água – muitas delas localizadas em regiões fronteiriças, o que eleva a tensão sobre seu controle e resguardo. Para a associação, ter informações como essas sistematizadas vai ajudar na proteção da área. Souza diz:

– Temos muitas riquezas aqui, sabemos que tem muito ‘olho grande’ pra cima de nós. Integrar os mais jovens fortalece nossos vínculos e prepara uma nova geração para lidar com essas ferramentas.


MORADORES AINDA LUTAM POR POSSE DEFINITIVA DA TERRA

Para os quilombolas, um dos ganhos imediatos da iniciativa é sistematizar quais regiões precisam de melhorias em condições básicas, como saneamento e energia elétrica, por exemplo. “Não temos um número exato de habitantes e sequer de comunidades [dentro do quilombo], o que é uma dificuldade para entendermos onde é mais urgente lutar pela chegada da energia elétrica, para combater problemas de saúde – como a doença de Chagas, um risco para quem tem galinheiro muito perto de casa – ou nos adaptar para proteger o meio ambiente”, diz o presidente da associação.

Suas estimativas apontam a presença de, no mínimo, 8 mil quilombolas vivendo no território, que ainda não é totalmente titulado: eles batalham pela posse definitiva de pelo menos 118 mil hectares de suas terras. 


De posse dos dados, os kalungas saberão com mais clareza onde estão as zonas que precisam ser protegidas do desmatamento, da invasão do agronegócio e das ameaças de grileiros e mineradoras.

Oficialmente, o projeto ainda visa proteger pelo menos dezenove espécies de flora e fauna em risco – como a Águia Cinzenta – e controlar a caça e as queimadas. “São práticas muitas vezes aplicadas no processo de preparo para o plantio, seja de invasores ou pelos próprios kalungas, por métodos mais tradicionais, que precisamos adaptar”, detalha Mota.

O georreferenciamento conta com verbas estrangeiras para sua realização. A iniciativa é fruto de um convênio firmado entre a associação com o Fundo de Parceria para Ecossistemas Críticos, que tem entre seus financiadores a União Europeia, o governo do Japão e o Banco Mundial.

No total, a parceria rende aos quilombolas um repasse total de US$ 139 mil, que deve ser investido até o fim de 2019 na realização dos questionários, compilação e tratamento dos dados, aquisição de equipamentos para análise – como computadores – e de um veículo com tração 4 x 4, para ajudar na gestão do território, com diversos pontos de difícil acesso.

Nascido e criado no Engenho II, comunidade às voltas de cachoeiras como Candaru e Santa Bárbara, Adriano Paulino da Silva cursa Sistemas de Informação na Universidade Federal de Goiás: é ele quem lida com o tratamento e análise dos dados do georreferenciamento. Sua participação simboliza um dos principais objetivos da iniciativa: aliar saberes ancestrais a novas tecnologias disponíveis para o manejo e a proteção do quilombo:

– Durante meses fiz especializações em programas de cartografia virtual e organização de dados, nós que editamos e criamos o questionário que foi aplicado por mais de 27 jovens em suas comunidades.

Por questões técnicas, a primeira etapa do projeto é focada em informações técnicas sobre as terras kalungas e seus usos – o embrião do questionário continha perguntas sobre costumes, rituais e práticas culturais, o que demandava entrevistas de pelo menos cinco horas de duração com os quilombolas. “Enxugamos ao máximo para manter em algo como duas horas de coleta para cada pessoa, porque assim fica mais viável sistematizar e tratar os dados”, detalha Paulino.

Hoje, o georreferenciamento está em fase de revisão das primeiras coletas e inserção de dados em um Sistema de Informações Geográficas. Paulino participa ativamente do processo e defende seus benefícios. “A gente trabalha pra poder traduzir esse conhecimento para uma linguagem nova”, diz. “As informações permitem que a gente cuide do solo nas roças coletivas para diminuir as perdas nas lavouras de arroz, feijão e milho, por exemplo”.

A produção agrária dos quilombolas é reconhecida por seus produtos orgânicos, como o arroz kalunga, a pimenta de macaco e o gergelim. Os kalungas são também protetores de inúmeras espécies graças à preservação de sementes crioulas, sem qualquer tipo de modificação genética.

O geógrafo Nunes acredita que esse tipo de dado, sistematizado, fortalece a agricultura coletiva e também melhora a produção nas “roças de toco”, menores e praticamente individuais. “O projeto deixará ferramentas com a comunidade para que ela veja, por si, diferentes porções do território que precisam de apoio, proteção ou trabalho”, afirma.

Ao fim do mapeamento, os kalungas terão acesso a imagens do território via satélite atualizadas a cada cinco dias, identificando pontos que precisam de manejo específico para a agricultura ou locais onde aconteçam degradação e invasões, segundo Paulino. Segundo ele, a presença dos mais jovens no projeto, responsáveis por aplicar os questionários, estreitou seus laços com lideranças históricas:

– Mesmo que os mais velhos, em geral, ainda confiem muito mais nos saberes tradicionais, eles têm se aberto aos mais jovens, têm acreditado que com novas ferramentas podemos proteger seus ensinamentos. Eles apostam em nós para manter viva a nossa cultura.
POLÍTICAS PÚBLICAS LEVARAM QUILOMBOLAS ÀS UNIVERSIDADES

Garantir que a juventude kalunga não abandone o território é um aspecto essencial para sua sobrevivência. Uma das descobertas preliminares do projeto trata justamente do êxodo dos mais jovens: segundo o assessor técnico do projeto, o perfil da população no quilombo mudou radicalmente desde a década passada. Fator relevante foram as políticas públicas de inserção social, como programas especiais de educação para povos tradicionais em institutos federais e universidades públicas – em risco sob a tutela de Jair Bolsonaro e seu governo.

“Há um êxodo considerável de homens e mulheres kalungas na faixa entre 18 e 29 anos: uma parcela considerável faz cursos técnicos ou de graduação fora do quilombo, em municípios como Brasília, Goiânia e Planaltina, e muitos não voltam – emendando mestrado e outros cursos de pós-graduação”, diz Nunes.

Um dos objetivos da iniciativa é oferecer alternativas para que o território quilombola possa acolher melhor seus jovens. Há expectativa que, com dados sobre suas necessidades, seja mais efetiva a integração de advogados, engenheiros ambientais, agrônomos, biólogos, historiadores e técnicos em informação kalungas ao desenvolvimento do quilombo.

“Sem contar o fato que, com o mapeamento sob seus cuidados, os kalungas poderão explorar melhor seus atrativos naturais, fortalecer o turismo sustentável – que exige uma qualificação que pode ser feita sem que futuros guias saiam do território”, afirma o assessor.

O georreferenciamento se alinha a outras tentativas de inovação na gestão kalunga. Este ano, as comunidades aprovaram o primeiro regimento interno de um quilombo no país, regulamentando quais práticas e usos são permitidos na agricultura, por exemplo. 


O documento foi elaborado após discussões nas comunidades, o que os ajudou na criação de um Conselho de Representantes na associação – que conta com pelo menos três lideranças de cada comunidade local. A aposta dos kalungas é que, munidos com novas ferramentas, possam fortalecer, pouco a pouco, sua autonomia.

Fonte: De Olho Nos Ruralistas 

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