Saudades: como era a vida das crianças nas décadas de 1960/70 no chamado corredor da miséria, em Goiás

Por Jefferson Victor,

Já dizia a canção de Ataulfo Alves: “Que saudades da professorinha que me ensinou o beabá, onde andará Mariazinha, meu primeiro amor, onde andará? Eu igual a toda meninada, quanta travessura eu fazia, jogo de botões sobre a calçada, eu era feliz e não sabia.”

Tive o privilégio de passar minha infância no interior nos anos 60/70, mais precisamente em Taguatinga, hoje Tocantins, São Domingos e Campos Belos, em Goiás. Foi uma infância sem televisão, telefone ou qualquer outra tecnologia.

A garotada fabricava seus próprios brinquedos: infinca, pião, pipa, carrinho de lata de óleo, de madeira e rolimã. Boizinhos eram feitos de mangas verdes e abacates que caíam sem amadurecer. Assim eram as fazendas de faz de conta.

As crianças adentravam a mata em busca de pitomba, mangaba, araçá, murici, cagaita, coco xodó, marmelada, puçá, buriti, caju, jatobá-do-campo, pequi, goiaba, manga, bruto, chichá e outras guloseimas. Sabiam atirar com estilingues, faziam e armavam arapucas.

Faziam visgo e reconheciam qualquer pássaro pelo canto. Brincavam de bacondê, salve-cadeia, biloca, futebol com bola de bexiga de boi, bola de leite de mangaba, queimada, uva-pera-maçã, jiribita e pavão, que consistia em tomar o que o outro tivesse na mão, sempre previamente combinado.

Também jogavam “metadinha”, em que tudo o que estivessem comendo precisava ser dividido quando fossem flagrados.

Gibis do Tarzan, Tio Patinhas, Super-Homem, Pateta, Zorro, Pato Donald, Homem-Aranha e Batman eram compartilhados, trocados ou emprestados. Em Taguatinga, na época, um rapaz criou um personagem que conseguia respirar debaixo d’água, usava ervas no corpo para repelir tubarões e, com isso, sobrevivia no mar.

Cheguei a ler histórias criadas por ele, mas ele não conseguiu publicá-las, e suas criações se perderam com o tempo.

Paneladas eram compartilhadas por meninos e meninas, com cada um contribuindo com alguma coisa para a comida de verdade.

Também era comum ver crianças engraxando sapatos, vendendo picolés, hortaliças e frutas em bacias ou carrinhos de mão feitos de madeira. As crianças tinham o direito de brincar, mas antes precisavam pisar arroz, milho, carregar água, cortar lenha e fazer as tarefas escolares.

O banho era por volta das cinco horas, sempre de balde e com água fria; alguns privilegiados esquentavam um pouco a água.

Na época da seca, as pernas ressecavam pela falta de umidade, e as mães, achando que era sujeira, esfregavam com bucha e caco de telha para “tirar a tiririca”, o que chegava a fazer sangrar as canelas.

A privada ficava do lado de fora da casa, com um piso de madeira e um buraco no centro. Era preciso ter boa mira para acertar o alvo. Quando a pessoa se abaixava, as moscas verdes já formavam uma nuvem, e os insetos pareciam ferver nas fezes armazenadas.

O cheiro era insuportável. Papel higiênico, quando havia, era aquele vermelho bem fajuto, que parecia mais uma lixa. Também era comum “cagar no mato” e limpar-se com folhas, que só espalhavam o esterco. Alguns menos experientes usavam cansanção (urtigas), o que causava queimaduras que exigiam hipoglós, lembrando o prato “pacu assado” (risos).

Era comum o uso de pinico à noite, mas como havia muitos meninos, ele sempre transbordava, dando trabalho para esvaziar. Muitos tinham o hábito de urinar na cama.

Às vezes, começavam a urinar sonhando, acordavam assustados, mas com preguiça de se levantar e acabavam terminando ali mesmo.

Algumas mães batiam no “infrator”. Sei de casos em que esfregavam o rosto da criança no lençol encharcado. O “mijão” às vezes tentava dormir até mais tarde para ver se secava, mas o cheiro denunciava o meliante (risos).

Na Sexta-Feira Santa, fazia-se anéis de coco xodó e chifre. Ficava-se esfregando na calçada até pegar o formato.

O acabamento era feito com folha de sambaíba, mas às vezes rachava, e o trabalho de horas se perdia. O pião era artesanal, feito com galho de goiabeira, um trabalhão danado que, por vezes, na hora de colocar o prego, rachava bem no meio.

Quando um adulto pedia para comprar algo, o troco geralmente ficava com a criança, o que era motivo de alegria, já que mesada era raridade.

Brincar na chuva era uma diversão garantida, e a enxurrada era sinônimo de muitas brincadeiras. Na época da manga, não havia menino magro; alguns andavam com a barriga rajada, uma mistura de poeira com o caldo da fruta.

Não existiam muitos serviços de utilidade pública ou entretenimento, mas a criatividade da garotada marcou uma época. Podemos chamar esses anos de “dourados”, pois são coisas que já não existem mais nas novas gerações.

Era uma mistura de sofrimento e divertimento; não havia tecnologia, mas sobrava alegria. Foi uma época difícil, mas que deixou saudades. Quem viveu naquela época tem histórias para contar, lembranças de um tempo que não se copia e que permanece vivo na memória.