Artigo: Não existe futuro para o cerrado sem a regularização dos territórios tradicionais
O bioma cerrado subiu ao topo do ranking do desmatamento no Brasil na semana passada. Dados do Relatório Anual de Desmatamento do Mapbiomas e do alerta de desmatamento mensal (Deter) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais destacam o cerrado como o bioma mais ameaçado hoje.
Com ele, estão suas populações e comunidades tradicionais, justamente as que mais contribuem para a conservação da biodiversidade e a geração de renda com sustentabilidade.
Os dados contrastam com a importância do bioma para a sociedade e, sobretudo, para a segurança hídrica e alimentar do país.
O cerrado é a savana mais biodiversa do mundo em fauna e flora, abriga as nascentes de oito das 12 principais bacias hidrográficas do país e consegue estocar cerca de 13,7 bilhões de toneladas de carbono em suas raízes de até 10 metros de profundidade.
Portanto, é um bioma central para os debates sobre perda de biodiversidade, regulação dos ciclos hidrológicos e mitigação das mudanças climáticas.
Ainda conta com a riqueza cultural e diversidade das comunidades tradicionais, muitas excluídas dos mapas oficiais e desconhecidas de grande parte da população brasileira.
Um levantamento realizado pelo Instituto Sociedade, População e Natureza, o ISPN, com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) em parte da região do Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) mostrou que existem 3,5 vezes mais comunidades tradicionais no cerrado do que mostram os dados oficiais.
Mesmo assim, o cerrado é desprestigiado e desprotegido. O número de unidades de conservação existentes é tímido se comparado a outros biomas, como a Amazônia — 8% contra 27% da área total de cada bioma, respectivamente.
Além de serem inferiores em número, as UCs são de pequena extensão e grande parte está na categoria de manejo mais flexível do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, as Áreas de Proteção Ambiental. A última unidade de conservação criada no bioma foi há 14 anos.
A situação é ainda pior com relação à proteção de imóveis privados. A reserva legal — porcentagem de uma propriedade privada que deve ser mantida com cobertura de vegetação nativa — do cerrado é de 20% a 35%, enquanto na Amazônia é de 80%.
As mudanças no Código Florestal, aprovadas em 2012, enfraqueceram ainda mais a proteção dos ecossistemas, por exemplo com a transferência de responsabilidade na concessão das autorizações de supressão de vegetação (ASVs) do nível federal para os Estados.
Sem qualquer verificação de conformidade e pouquíssima transparência, irregularidades na concessão de ASVs passam despercebidas e legitimam o avanço do desmatamento no bioma. Em estudo recente, o Imaterra amostrou 26 ASVs em total desconformidade com a legislação florestal na região oeste da Bahia.
A morosidade e leniência do Estado em analisar e validar os dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR), mais de 10 anos após sua criação, faz com que esse importante instrumento de regularização ambiental venha sendo usado indevidamente para validar a grilagem de terras no Brasil. Dessa forma, é essencial que sejam adotadas medidas para que os estados façam a análise das informações relativas aos imóveis cadastrados no CAR e adotem critérios mais rigorosos para a concessão, a verificação de conformidade e a fiscalização das ASVs.
A grilagem avança principalmente sobre terras tradicionalmente ocupadas por povos e comunidades tradicionais, invisibilizados perante a sociedade.
Geraizeiros, comunidades de fundo e fecho de pasto, quilombolas, brejeiros, quebradeiras de coco babaçu e diversos outros segmentos possuem uma íntima relação com os territórios e com os recursos naturais do cerrado e produzem uma diversidade enorme de alimentos que abastecem as cidades. Essa produção não é devidamente capturada pelas estatísticas oficiais pois é consumida, trocada e vendida diretamente para os consumidores.
É preciso aumentar a ambição para a conservação do cerrado.
Cabe ao poder público reconhecer a enorme contribuição de indígenas, quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais para a conservação dos recursos naturais e avançar no reconhecimento de direitos territoriais.
Analisando os mapas de 300 territórios de uso tradicional no cerrado, entre 90% e 95% de seus territórios apresentam cobertura de vegetação nativa.
Hoje, reconhecer os territórios tradicionalmente ocupados é a estratégia mais efetiva e urgente para reduzir o desmatamento no cerrado e garantir provisão de comida e serviços ecossistêmicos para a sociedade.
ISABEL FIGUEIREDO, coordenadora do Programa Cerrado e Caatinga do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN)
Publicado originalmente no Correio Braziliense