Deu na Folha: em Monte Alegre (GO), diretoria de igualdade racial faz a diferença
Por Angela Boldrini e Pedro Ladeira
MONTE ALEGRE DE GOIÁS (GO)– São 8h23 da manhã de terça-feira (8), e Maria Helena Rodrigues, a Tuya, está ao telefone. “As doses dos kalunga estão aí, podem ir. Eu já arranjei tudo ontem.”
Desde a noite anterior, a líder quilombola e recém-empossada diretora de Igualdade Racial do município de Monte Alegre de Goiás organiza a aplicação da segunda dose da vacina contra a Covid-19 em um grupo da comunidade kalunga.
A tarefa não é fácil. Tuya mora na comunidade quilombola Tinguizal, a cerca de 65km da prefeitura da cidade, metade deles a serem percorridos em uma estrada de terra com subidas íngremes e poeirentas, pontes precárias e riachos.
Não há internet nem sinal de celular na casa das 78 famílias nesta que é somente uma das comunidades do município, onde moram cerca de 500 famílias kalunga.
Por isso, durante a noite de segunda, Tuya grava áudios explicando como será a imunização no dia seguinte e pede ao filho Maurício, 13, que vá de moto até a escola, alguns quilômetros adiante, para enviá-los a partir do wi-fi comunitário.
O processo se repete algumas vezes. “Agora você está vendo como é para fazer as coisas por aqui”, diz.
A Folha perguntou aos governos dos 26 estados e do Distrito Federal sobre políticas municipais de combate à desigualdade racial que considerassem notáveis. Nas respostas, foram listadas 81 cidades com iniciativas. Dez estados não enviaram respostas ou disseram não ter conhecimento de políticas do gênero.
Em Goiás, que aparece como quarto estado menos desequilibrado racialmente no Índice Folha de Equilíbrio Racial (Ifer), a pequena Monte Alegre de Goiás é uma das cidades que possui uma política específica para a população negra, que no Censo de 2010 representava 82% dos 7.730 habitantes. Boa parte é quilombola ou descendente de algumas das inúmeras comunidades que circundam a área urbana.
Entre eles estão os kalunga, povo que vive em três municípios do estado há mais de 200 anos e são descendentes de escravos que fugiram do cativeiro e formaram uma comunidade na região da Chapada dos Veadeiros. Vivem hoje onde estão os municípios de Teresina de Goiás, Cavalcante e Monte Alegre de Goiás.
Os kalungas convivem com a falta ou dificuldade de acesso a direitos básicos como educação, saúde, emprego e saneamento. De acordo com o prefeito, Felipi Campos (DEM), a principal fonte de renda da população vem de programas sociais como o Bolsa Família.
Nos campos, onde a principal atividade das fazendas é a pecuária, há pouco trabalho, diz ele. No funcionalismo público, a média de rendimentos é de um salário mínimo.
Além disso, Tuya diz que há racismo histórico contra os quilombolas. “As crianças kalunga sempre andam em grupo, porque nossas mães não nos deixavam vir para a cidade. As pessoas xingavam a gente, jogavam pedra”, conta ela.
Para pleitear melhorias, a comunidade se organizou em associações e passou a disputar espaço na política local. Desde que assumiu a diretoria municipal, há pouco mais de um mês, Tuya diz ter se concentrado na vacinação dos quilombolas contra a Covid-19.
No dia seguinte após receber a reportagem em sua casa, ela participou de uma reunião com lideranças kalunga de outros municípios para um projeto de fornos a lenha sustentáveis, foi à escola buscar a merenda dos filhos, sem aulas presenciais desde o início da pandemia, e partiria para Goiânia para se reunir com secretários municipais e estaduais.
Duas das políticas que os kalunga pleiteiam com urgência estão ligadas às dificuldades de locomoção: a implantação de um posto de saúde ao menos para primeiros socorros e a vinda de médicos para realizar pré-natal duas vezes por mês nas grávidas da comunidade.
“No mês passado perdemos um bebê de sete meses, a mãe deu à luz ali quase chegando na rodovia, mas não deu tempo de salvar”, diz Tuya.
Fonte e texto: Folha de São Paulo