Cavalcante e Campos Belos: existência de povo indígena isolado em Goiás é mistério a ser decifrado
Com texto de O Popupar,
No início de junho deste ano, o desaparecimento por 24 horas de duas crianças, de 4 e 2 anos, da comunidade quilombola Kalunga Vão do Moleque, em Cavalcante (GO), reacendeu dúvidas sobre a existência ou não de índios isolados da etnia avá-canoeiro na região.
Alvani Cesário, de 25, escreveu na página da Comunidade Kalunga do Vão de Almas, no Facebook, que “já foram vistos motivos (sic) de povo indígena na região por moradores, como sinais de fogueiras, artesanato de madeira e também flecha”.
Alvani garante que não foi nada disso, apenas expôs uma questão sempre mencionada pelos mais velhos. “Escrevi o que ouvi na comunidade, dos vestígios que foram vistos recentemente.
Na sua postagem, Alvani ressalta que o fato das crianças terem voltado para casa com os bolsos das bermudas cheios de cocos de guariroba ou gueroba, no jargão goiano, pode indicar o contato com os índios que usam esses frutos para se alimentar.
Presidente da Associação Quilombola Kalunga (AQK), Jorge Moreira, de 53, vive na comunidade do Engenho, em Cavalcante, e participou das buscas às crianças.
“Eu ajudei a procurar os meninos junto com a equipe de resgate e posso dizer que a distância que eles caminharam, cerca de 12 km, nos deixou boquiabertos.
“Não há mais lugar no território Kalunga sem gente. Com a abertura para o turismo, há movimento em todo lugar.
Noite fora de casa
Segundo Jorge Moreira, as crianças saíram da casa dos pais, na comunidade Vão do Moleque, para visitar o avô, mas se perderam no caminho, uma área de muitas serras.
Depois de uma noite fora de casa, os meninos foram encontrados por Brígida, moradora da Fazenda Chocão, que estranhou pegadas de crianças pela estrada e foi atrás. Inicialmente, um dos meninos correu dela, mas exaustos da intensa caminhada, concordaram em segui-la. Somente após serem alimentados, foram entregues ao Corpo de Bombeiros.
“Uma das crianças estava com os pés mais machucados, indicando que tinha andado o tempo todo.
Busca
A postagem de Alvani Cesário atraiu a atenção de Kamutajá (leia-se Kamutaia) Silva Ãwa, de 25, que pertence ao grupo avá-canoeiro que vive na Ilha do Bananal (TO).
Essa relação foi contada no documentário Taego Ãwa, dos irmãos Henrique e Marcela Borela, pelo avô de Kamutajá, o líder e pajé Tutawa, que morreu em 2015.
Para Kamutajá, há avá-canoeiro resistindo ao contato com os brancos em Cavalcante e na Mata do Mamão, na Ilha do Bananal, onde também pretende percorrer.
Resistência
Aproximadamente 30 integrantes do povo Ãwa, como originalmente os avá-canoeiros se autodenominam, vivem na Ilha do Bananal. Kamatujá é do grupo que está na linha de frente para garantir um território à etnia, a terra Taego-Ãwa, demanda histórica ainda sem aprovação oficial. “Nós ficamos esquecidos. Não tivemos direito ao nosso território.
A história dos avá-canoeiros remonta ao século 18. O grupo indígena vivia às margens do Rio Tocantins e resistiram à colonização do Brasil Central.
Uma frente de atração da Fundação Nacional do Índio (Funai), tendo à frente o indigenista Apoena Meirelles, capturou em 1973 dez desses indígenas, numa ação considerada violenta corroborando o histórico de agressão ao povo avá-canoeiro. O líder do grupo era Tutawa, o avô de Kamutajá.
Os descendentes de Tutawa, fortes e resilientes, lutam pela afirmação étnica e pela terra Taego Ãwa, na região da Mata Azul, município de Formoso do Araguaia.
Em Goiás
Entre Colinas de Goiás e Minaçu vivem oito integrantes da etnia, o dobro de 1983 quando eles se apresentaram a um trabalhador da região que conheciam à distância.
Ainda resistem as irmãs Matxa, com idade aproximada de 82 anos, e Naqwatcha, de 77, e a filha da última, Tuia, de 48. Seu marido, Iawi, morreu em 2017. Tuia e Iawi tiveram os filhos Trumak, de 33, e Niwathima, de 31, o grupo considerado avá-canoeiro autêntico, por não ter se miscigenado com outras etnias.
Niwathima se casou com um índio tapirapé, Kaptomy’i, conhecido como Parazinho, e teve três filhos, Paxe’o, de 8, Wiro’i, de 5 e Kaogo, de 4. Debilitadas, as duas irmãs do grupo original passam a maior parte do tempo deitadas em redes.
A terra deles em Goiás, de 38 mil hectares, foi reconhecida como de posse permanente pelo Ministério da Justiça em 1996, mas a área foi parcialmente inundada pela represa da Hidrelétrica de Serra da Mesa, o que levou Furnas a pagar royaties à etnia, dinheiro administrado pela Funai.
Improvável, mas não impossível
O indigenista Renato Sanches, de 65, que atua no escritório da Funai, em Goiânia, não acredita na possibilidade de existência de avá-canoeiros isolados. Ele esteve à frente da última frente de contato realizada pelo órgão, no início dos anos 1990, na região de Cavalcante, próximo ao sítio quilombola Kalunga.
Renato conta que o próprio Iawi, um dos avá-canoeiros que se apresentou em Minaçu, esteve com ele em determinado momento da frente e não encontrou vestígios.
O antrópologo Christian Teófilo da Silva, professor doutor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Brasília (UnB), especialista em etnologia indígena, acredita que “faz parte do imaginário regional a presença de avá-canoeiro como ‘explicação’ para muitos vestígios.
O pesquisador conta que os avá-canoeiros, hoje em Minaçu, falavam que viviam em itakwaga, que significa buraco na pedra, ou seja uma morada de refúgio. “Eles tinham essa habilidade, por isso podemos ser surpreendidos.” Para Christian as frentes de contato, que deixaram de existir há anos, ficaram próximas ao Rio Maranhão e às estradas.
Outro indigenista, Egipson Correia, que conhece bem o universo avá-canoeiro, concorda com Renato Sanches de que as visitas da Funai em Cavalcante em busca de remanescentes da etnia não foram frutíferas no passado.
A Funai não respondeu aos questionamentos do jornal.