Para pensar: O Judiciário como Juiz de si mesmo



Por José Rodrigo Rodriguez, professor de graduação, Mestrado e doutorado da UNISINOS e coordenador Núcleo Direito e Democracia do CEBRAP/SP


No último dia 01/07, foi notícia em todo o país a decisão da ministra Rosa Weber determinando a suspensão de todas as ações promovidas por magistrados e membros do Ministério Público do Paraná contra o jornal Gazeta do Povo e cinco de seus jornalistas.


O caso teve início quando, em fevereiro de 2016, este veículo de comunicação divulgou e criticou em algumas matérias os supersalários praticados no Judiciário e no Ministério Público paranaenses. Numa delas, intitulada “TJ e MP pagam supersalários que superam em 20% o teto previsto em lei” (Leia a Matéria na íntegra), são divulgados os vencimentos de cada juiz(a), desembargador(a), promotor(a) e procurador(a) de justiça, de acordo com os dados públicos do portal da transparência.


As notícias tiveram grande repercussão naquele Estado e até impacto nacional, levando à propositura de, segundo noticiado pelo portal G1 (Leia a Matéria na íntegra), 42 ações pelos integrantes do TJ e do MP, que se sentiram atingidos pela reportagem. Em razão destas ações, os profissionais de mídia ficaram por vários dias sem trabalhar para poderem comparecer às audiências, percorrendo mais de 9 mil quilômetros (de acordo com reportagem do Jornal Nacional) entre as diversas comarcas onde as ações foram propostas.


Daí por diante, toda a imprensa do país voltou os olhos para esse caso de extrema e incomum litigiosidade em face de um veículo de comunicação. Pois o efeito prático destas ações foi, além das dificuldades geradas para o desenvolvimento cotidiano de seu trabalho, a intimidação dos profissionais e do jornal, já que as condenações podem vir a somar cerca de R$ 1,3 milhão.


Sem entrar no mérito das ações propostas, que serão decididas adiante pelo juízo competente, o episódio traz à tona uma série de questões. Primeiro, é razoável que o Judiciário (e o próprio Ministério Público) ou alguns de seus membros processem repórteres que dirigem críticas a eles, mesmo que sejam ácidas? 


Ou que processem jornalistas por divulgarem fatos sobre seu orçamento e vencimentos, mesmo que tal divulgação cause algum constrangimento pessoal? Além disso, é razoável que magistrados e magistradas julguem uns aos outros em casos como estes? Não deveria haver uma instância de controle e limite da jurisdição, exterior ao Judiciário, para decidir casos em que o Judiciário é autor e juiz da ação?


A crescente notoriedade dos Tribunais, com diuturna influência nas pautas políticas e sociais da nação, coloca alguns problemas ainda não enfrentados de forma ampla. A função judiciária tem atuado constantemente para alterar o jogo de poder na sociedade, por exemplo, atuando em conflitos que envolvem disputas parlamentares ou conflitos entre os poderes.


Nesse sentido, Otto Kirchheimer, em sua obra “Political Justice” (1961), demonstra como as Cortes participam cotidianamente da distribuição de poder por meio do processo judicial, mobilizado por diversos agentes sociais. Muitas vezes, o processo é manejado para atingir fins específicos de ordem política, sobretudo quando proposto em face daqueles que questionam, restringem ou disputam certa posição de poder nos embates político-partidários.


No caso em análise, o procedimento judicial está sendo utilizado para discutir a atuação de agentes de poder que dirigem os processos judiciais, levando o Judiciário a se manifestar sobre si mesmo, em um arriscado exercício de metalinguagem político-jurídica. Afinal, ao judicializar este tipo de questão, os membros do Judiciário levam o debate a respeito de sua atuação para o interior de seus domínios.


Ora, tal movimento, caso se torne usual, pode resultar, com o perdão da repetição, necessária aqui, na monopolização judicial do debate sobre a atuação judiciária. Afinal, na arena do processo, o exercício da crítica aos juízes, juízas e Tribunais ficaria sob o estrito controle deste poder e limitado à racionalidade mais restrita, por ser mais técnica, da dogmática jurídica.


Desta maneira, temas como a atuação de cada um dos membros do Judiciário e do MP, a posição social que ocupam, a remuneração que recebem e outros, de evidente interesse público, ficariam restritos à arena do processo e sob a ameaça de indenizações intimidatórias ao livre exercício da crítica pública. O caso da Gazeta do Povo é emblemático destes problemas e as decisões da Ministra Rosa Weber dão o tom da disputa.


Otto Kirchheimer considera a tentativa de manutenção do status quo como uma característica de vários casos de uso político da justiça (political justice). Para ele, “Processos judiciais servem para autenticar e, assim, limitar a ação política [do grupo subjugado]” (KIRCHHEIMER, 1961, p. 6). Parece ser razoável, salvo engano, discutir as citadas ações do Paraná nesses termos, observando que um de seus efeitos é enfraquecer ou mesmo eliminar do debate público o “inimigo”, qual seja, neste caso, o livre exercício da crítica pela imprensa.


É importante notar que se as decisões judiciais são cada vez mais relevantes politicamente, se o Ministério Público e o Judiciário passam a atuar cotidianamente em temas políticos, parece normal que tais decisões e o Judiciário e o MP como um todo, passem a ser questionados publicamente em todos os aspectos de sua atuação. Pois estes órgãos estão deixando de ser agentes discretos e bissextos na vida nacional, passando a ocupar a posição de protagonistas dos principais acontecimentos políticos de nosso tempo.


Não parece ser razoável, assim, com todo o respeito aos magistrados e magistradas envolvidas na contenda, que juízes, juízas, promotores e promotoras se incomodem demais com questionamentos da mídia sobre sua atuação ou posição profissional. Esse parece ser o preço a pagar pela exposição pública, ao menos em uma democracia, regime em que as autoridades têm o dever de justificar publicamente todos os seus atos, judiciais e administrativos.


A ministra Rosa Weber, inicialmente, enfrentou a disputa apenas quanto à impossibilidade de o caso ser analisado pela Suprema Corte. De todo modo, fez constar que o direito de ação a todos aproveita, não havendo abuso nas diversas ações de magistrados e membros do MP, reverberando assim, num primeiro momento, a tese dos (as) juízes (as). Todavia, face ao recurso interposto, a mesma Ministra reconsiderou sua decisão e não somente resolveu processar o pedido como deferiu liminar suspendendo todos os processos em trâmite.


O impacto político foi imediato. Os principais meios de comunicação nacionais divulgaram amplamente a decisão, com direito a matéria de mais de três minutos no Jornal Nacional. Agora, toda a sociedade poderá acompanhar o desfecho do caso, pois ele se tornou mais visível.


No entanto, a despeito disso, para o problema que nos toca, o STF ainda faz parte do Poder Judiciário e possui vínculos com todos os Tribunais do país. Basta abrir o portal do TJPR, por exemplo, para ver notícia recente sobre a visita institucional entre os presidentes de uma e de outra Corte ocorrida no mesmo dia da decisão, 30/06/2016 (publicação intitulada “Presidente do TJPR visita presidente do STF).


É evidente que este fato não tem relevância direta para a tomada de decisão neste caso. No entanto, quando consideramos o desenho institucional do estado brasileiro, estamos diante de um grande impasse.


E o fato é que a decisão da ministra, mesmo que ainda não tenha posto fim ao processo, reverberou sobre a controvérsia travada no Paraná. Notas das associações de jornalistas, magistrados e do ministério público não faltaram nos últimos dias. E depois da ordem de suspensão dos processos, houve uma forte manifestação de força em toda a imprensa. A mensagem que transpareceu para a população, neste instante, é a de que há abuso por parte do judiciário paranaense, mesmo que não se possa, insistimos, extrair tal assertiva da decisão. No entanto, seu impacto político imediato é mais do que evidente.


Cada ato deste processo tenderá a ser divulgado com ampla repercussão sobre a esfera pública. É justamente a publicidade que motiva, de acordo com Kirchheimer, a utilização da justiça como meio de autenticar uma posição no jogo político. Afinal, uma decisão favorável faz com que todos e todas fiquem sabendo que determinado agente político está falando “em nome da lei” e não em nome de um ato ilícito.


Mais uma vez, é de observar a insolubilidade do problema central: não há um órgão ou instituição desvinculado do Judiciário, competente para decidir casos que dizem respeito diretamente a este poder. O que só reforça a necessidade de falar sobre questões como esta publicamente para cobrar dos juízes e juízas boas razões de decidir. O silêncio ou a judicialização intimidatória, em casos como estes, podem se revelar gravemente antidemocráticos, ao limitarem, para além do que seria razoável, o debate público por meio da imprensa.


Fonte: Site Jota

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