O abandono do abrigo infantil de Campos Belos: trabalho excessivo, falta de funcionários e abuso de menor


Por Luiz Eduardo Costa Lucas*, 

São quase 10 horas da manhã de uma quarta-feira e uma conselheira tutelar vai ao Hospital Municipal de Campos Belos visitar um bebê que está internado em razão de uma infecção no intestino e na garganta. 


Ele tem febre e aparenta convulsão. O menor está acompanhado de uma funcionária do abrigo infantil da cidade que é mantido pelo Poder Público Municipal. 


No local, a funcionária relata à conselheira que havia começado seu trabalho no dia anterior, teria passado a noite com a criança e não sabia como proceder pois não havia ninguém que pudesse revesar o acompanhamento do bebê com ela. 


A conselheira então telefona para o Ministério Público e relata o fato. 


O MP entra em contato com a Ação Social, órgão da Prefeitura Municipal, que então toma providências e encontra outra acompanhante para o bebê – isso apenas após interferência do órgão de fiscalização.


Essa é a estressante rotina de trabalho das funcionárias do abrigo infantil de Campos Belos. O que poderia ser uma exceção é, na verdade, uma triste realidade.


O abrigo de crianças de Campos Belos funciona há pelo menos 8 anos. Foi criado para dar amparo aos impúberes que precisam ser retirados do convívio familiar, como prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente, por conta de situações diversas. 


São histórias que, não raro, envolvem drogas, violência e traumas a serem superados pelos pequenos ao longo da vida. 


Mas, o que era para ser um lugar temporário e de possibilidades de uma nova vida, vem acumulando denúncias que mais parecem um pesadelo adicional na vida das crianças.


No último sábado, 28/10, a bomba relógio explodiu.


Abuso de Menor


Um adolescente, portador de necessidades especiais – com déficit de desenvolvimento mental – abusou sexualmente de uma criança mais nova. Era uma tragédia anunciada. 


A única funcionária presente interveio, mas teria recebido ordens de fazer “boca de siri” diretamente da direção do local. Chama a atenção o fato de que apenas uma única funcionária trabalha no abrigo a cada plantão. 


De acordo com relatos de conselheiros tutelares, a funcionária escalada precisa cuidar da casa onde vivem os menores, da alimentação e do cuidado diário de todas as sete crianças abrigadas. 


No caso do abuso ocorrido no sábado, só houve a denúncia ao MP porque uma outra cuidadora, ao saber do ocorrido no plantão anterior, averiguou junto às crianças e relatou o acontecimento ao Conselho Tutelar, que, por sua vez, levou o caso ao conhecimento do Ministério Público no mesmo dia, terça-feira,  30/10, mais de 48 horas depois do fato, sem nenhuma informação por parte da direção do abrigo a quem devesse comunicar. 


Ao receber a denúncia as autoridades iniciaram os procedimentos de investigação e de transferência do adolescente para um local adequado. 
Enquanto o caso era apurado, corria a notícia de que a situação do menor já era de conhecimento do MP desde a gestão municipal anterior. 


Este, por sua vez, tentou judicialmente meios para a transferência do adolescente, que acabaram sendo ineficazes, uma vez que todos os abrigos da capital goiana onde se requereu a internação, rejeitaram os pedidos. 


Um flagrante caso de ineficiência do Estado governado por Marconi Perillo na prestação de apoio às crianças assistidas.


O caso do abuso no abrigo infantil de Campos Belos é fruto da irresponsabilidade na gestão local. 


De acordo com os conselheiros tutelares ouvidos e com informações obtidas no Ministério Público, as denúncias e determinações de providências se acumulam há muito tempo. 


Algumas são inacreditáveis e beiram o absurdo, como no caso de uma funcionária que convidaria o namorado para passar as noites nas dependências do abrigo em seu plantão, quando então fechava a porta de um cômodo deixando as crianças sozinhas. 


Ou ainda o relato de que uma criança somente foi levada para visitar a mãe presa quando passou mal e o Ministério Público novamente interveio. Vale lembrar que essa conduta fere norma do Direito Internacional ratificado pelo Brasil nos termos das Regras de Bangkok, aprovadas pela ONU em 2010 e disponíveis para consulta em português.


O grande problema, por vezes, é a desinformação, o que, aliado a um quadro de gestores mal preparados, funcionárias cansadas pela carga extenuante e crianças abandonadas, formam uma combinação assoladora.


Parece não haver disposição em se fazerem melhorias no local. Nem físicas, nem humanas. 


Carga de Trabalho Excessiva


Os problemas não atingem somente as crianças. A carga de trabalho pode chegar a inacreditáveis 24 horas ininterruptas, podendo ser dobrada. 


É absurdamente difícil conceber que um ser humano possa ser submetido a um regime de trabalho nessas condições por tanto tempo, tendo crianças sob sua responsabilidade, por vezes doentes. Além disso, cada um dos pequenos possui suas peculiaridades e necessidades de atenção. 


Como uma única mulher consegue brincar, alimentar e dar colo a 7 crianças carentes? 


A gestão anterior do abrigo ,informou que antes, pelo menos, duas funcionárias trabalhavam durante o dia e à noite uma faria plantão, esse número podia ser aumentado a depender do número de crianças abrigadas. 


O vencimento mensal é de 1 salário mínimo, que com os descontos reduz-se para aproximadamente R$ 830,00. 


Não é fácil. As mulheres que aceitam esse desafio precisam se desligar de suas vidas particulares a cada plantão, pois não podem se ausentar do local. Não contam com uma colega para trabalharem juntas no  mesmo turno. 


São trabalhadoras que deixam seu lares, seus filhos e suas vidas para dedicarem boa parte de seus dias corridos no cuidado de crianças carentes. Elas merecem nosso respeito. 


São retrato da sociedade contemporânea, onde o papel da mulher é de desdobrar-se em arrimo de casa, nem que para isso façam dupla ou tripla jornada e dedicação quase nula a si mesmas.


Há quem possa estar lendo neste momento e conjecturar: “melhor isso que o desemprego”. 


Não é difícil compreender esse raciocínio quando lembramos a crise que o país vive e a escassez de empregos em Campos Belos. São mulheres que aceitam o desafio pelo medo do rolo compressor das necessidades diárias próprias.


A situação das funcionárias é de pleno conhecimento do Poder Público Municipal, que até o momento não sinaliza nenhuma disposição em melhorar a situação – a despeito das constantes interferências do Conselho Tutelar e do Ministério Público.


Os relatos ouvidos deixaram atônita parte da população de Campos Belos. Para piorar um pouco mais o cenário já turvo, quem trabalha com a justiça sabe que processos de adoção podem ser muito lentos. 


Esse quadro de demora contraria frontalmente o Estatuto da Criança e do Adolescente que prevê a passagem pelo abrigo como uma situação temporária e que a colocação do menor em família substituta deve priorizar o bem estar e o melhor interesse da criança. 


Não podemos crer que a permanência por tempo prolongado num ambiente como se encontra o abrigo seja saudável para qualquer criança.


A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, com sede em Brasília, por meio de sua página na internet, repudia qualquer situação de risco a qualquer grupo social, em especial aqueles que venham ferir a dignidade da pessoa humana, inclusive de crianças e adolescentes, e pode ser acionada pela sociedade civil caso a Prefeitura Municipal de Campos Belos não dê uma resposta rápida e à altura do problema que estamos enfrentando.


A Comissão de Direitos Humanos do Congresso Nacional também tem capacidade de analisar casos que afrontem a dignidade de crianças e adolescentes.


Direito a Indenização e Internação Adequada


No caso da criança abusada, resta lembrar que os responsáveis legais por ela podem requerer indenização da Prefeitura pelo dano causado


O abuso, por si só, já é ato de extrema gravidade. 


Quando combinado com omissão e negligência, torna-se caso de direitos humanos fundamentais retirados desse pequeno brasileiro que estava sob tutela do Poder Público Municipal camposbelense e que jamais, sob hipótese alguma, deveria ter passado por isso.


Fica aqui o apelo à comunidade jurídica de Campos Belos. 


Quando nós, operadores do direito, recebemos nossa inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil, por meio de solenidade pública, repetimos perante a sociedade ““Prometo exercer a advocacia com dignidade e independência, observar a ética, os deveres e prerrogativas profissionais e defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático, os direitos humanos, a justiça social, a boa aplicação das leis, a rápida administração da Justiça e o aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas”. 


Esse caso nos evoca a defesa de direitos humanos de quem ainda não sabe se defender. No caso do menor com problemas de desenvolvimento mental, não basta transferi-lo para uma unidade de menores infratores. 


O caso dele é especial. Amparado por laudos médicos que comprovem sua condição especial, ele deve ser colocado em internação com acompanhamento. Vale lembrar que qualquer acontecimento que fira a integridade e a dignidade do menor que cometeu o abuso, também poderá ser de responsabilidade estatal, caso seja colocado em local indevido em razão de sua condição.


Possibilidades de Melhorias


Diante da ineficiência, precariedade, desinteresse e despreparo na gestão do abrigo, talvez fosse o momento da atual gestão municipal assumir sua limitação e buscar parceiros na sociedade civil, como por exemplo por meio das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, as Oscips, regulamentadas por Lei Federal desde 2014.


Essa liberalidade, que já se materializa em diversas cidades brasileiras, tem sido um fator de alívio na gestão dos recursos e do capital humano por parte das administrações públicas espalhadas pelo país.


Em nome das nossas pobres crianças hoje vivendo no abrigo e das funcionárias que ali trabalham, pedimos ao menos um traço de humanidade no trato da questão e providências urgentes de reparação aos terríveis acontecimentos.


PS – entramos em contato com a Diretora do Abrigo, Celma, e com a Secretária de Ação Social do município, Leuzinete Pereira – mãe do prefeito – por telefone, mas disseram estar ocupadas no momento e não retornaram as ligações.

* Luiz Eduardo Costa Lucas é advogado e colaborador deste blog

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